Escrito por Sandra Rodart Araújo
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Para ter opinião frente aos acontecimentos de 1964: Encaminhamentos políticos e questões estéticas.
Em 1964, ao lado de outros, Vianna funda o Grupo Opinião, cujo Show Opinião[1] foi a primeira manifestação artística contrária ao golpe. Entre o fim da década de 1960 e início dos anos 1970, o dramaturgo se desliga do grupo, mas continua a escrever, diversificando seu trabalho com a ida para a televisão — tv Tupi e depois a Rede Globo.
Antes de 1964, assuntos como revolução e conscientização popular davam a tônica nos textos. Das peças de então, a maioria tinha objetivos didáticos: alcançar um público maior e prepará-lo para encaminhamentos que desembocariam numa sociedade mais justa. Esses traços se evidenciam, em especial, nos textos do cpc como A Mais Valia vai acabar seu Edgar; Brasil, Versão Brasileira e O Auto dos 99%. Respectivamente, tratavam de temas como a condição alienada do operário no que se refere ao produto que fabrica e à sua relação com o patrão; o imperialismo, que atrapalha o desenvolvimento do país; e a restrição do ensino público nas universidades, legado a minoria: 1% — como informa a peça.[2]
Posto isso, não era a profundidade psicológica dos personagens que caracterizava os textos dessa fase; “para isso é necessária a fábula. Diminuir os desenhos subjetivos dos personagens e inundar o palco de acontecimentos exemplares. Fazer teatro com evidências”. (VIANNA FILHO, 1999, p. 95). Com os acontecimentos de 1964, as peças começam a evidenciar outras temáticas. A complexidade da sociedade que se instaura na década de 1960 leva o dramaturgo a um exame mais apurado dos problemas que afligem sua época. A temática central passa a ser a investigação do homem de classe média em seu momento; assim, assuntos como velhice, publicidade e limites da militância são recorrentes no pós-1964. Ressalte-se que as mudanças temáticas trazem mudanças formais; os personagens passam a ter dimensões psicológicas complexas e profundas. Dessa época podem ser citadas: Moço em Estado de Sítio, Mão na Luva, Corpo a Corpo e Rasga Coração, dentre outras. Portanto, as mudanças de conteúdo não se situam fora dos acontecimentos históricos; ao contrário, a transformação da realidade é reelaborada por Vianna nos textos.
Nesse sentido, a dramaturgia de Oduvaldo Vianna Filho tem sido discutida e analisada tanto em obras de cunho acadêmico quanto biográfico. Nesses trabalhos percebe-se a confirmação da análise de críticos teatrais que, tomando para si a responsabilidade de “construir” uma historiografia do teatro brasileiro, criaram uma forma de interpretação. Esses homens de teatro tiveram uma importância primordial, seja no apoio aos diversos grupos — ao divulgarem os espetáculos — ou na luta em defesa do teatro quando se impõe a censura.[3]
As mudanças de enfoque nas peças de Vianna estavam intrinsecamente ligadas ao momento histórico vivido; e a diversificação de sua atuação no meio artístico contribuiu para a diversificação temática. Na década de 1960 Vianna desenvolveria trabalhos, também, na tv — seja produzindo programas de entrevistas, seja adaptando textos.
Em 1964, as discussões presentes nos palcos se tornavam inviáveis e pareciam esvaziadas de sentido: como continuar a propalar temáticas como luta por melhores salários, importância da greve, conscientização da exploração da classe trabalhadora pelos patrões, necessidade de educação e cultura para o povo? Aqueles que compartilhavam as ideias de um teatro de transformação popular se viram separados da possibilidade de contato com o povo; se viram impelidos a buscar novas formas de manifestação frente ao seu momento. Era preciso avaliar a derrota.[4]
As mudanças nos encaminhamentos políticos do país suscitaram este questionamento: em que sentido as experimentações estéticas contribuem para uma verificação mais profunda dos problemas sociais? A primeira experiência de Vianna com mudança temática foi a escrita de Moço em Estado de Sítio, que situa a trama no cotidiano de um jovem de classe média, o protagonista Lúcio. Envolvido em conflitos pessoais e profissionais, ele é levado a trair os companheiros de um grupo teatral. O jovem é indeciso, mas opta pelo caminho da ascensão profissional a qualquer custo. Questões como desmobilização, traição dos ideais e busca de alternativas apenas no âmbito individual fazem de Moço em Estado de Sítio uma primeira resposta à perplexidade provocada pelo golpe. Não por acaso, o texto é guardado pelo autor: a acidez da constatação da derrota não condiz com os encaminhamentos do Partido Comunista Brasileiro (PCB) — os quais Vianna coerentemente defendeu.
Na década de 1960, o dramaturgo escreveu textos onde os personagens não apresentam a profundidade psicológica[5] experimentada em Moço, mas sua produção já apontava para isso: a não-profundidade pode ser vista em Show Opinião, Liberdade Liberdade e Se corre o Bicho pega se ficar o Bicho come. E mais: se o momento anterior ao golpe era marcado pela euforia das propostas que, em todo o país, criavam um clima de crença na possibilidade de uma revolução socialista — isto é, a ideia de luta de classes —, as peças evidenciavam isso também.
Privilegiando o político, privilegiando a informação sociológica em relação ao estético, privilegia, vamos dizer, a clarificação da realidade mais que o enfrentamento da realidade na sua complexidade; não dá instrumentos estéticos… Não se preocupa em dar ao estético os instrumentos de criação de novos valores, de apreensão de tensão do homem subdesenvolvido na sua luta pela superação da sua condição. (VIANNA FILH0, 1999, p. 164)
Portanto, o arcabouço estético que, como verificado, não estava nas primeiras pautas na década de 1960 se torna o centro do debate. Agora, a categoria teatral travava um acalorado debate sobre a qualidade artística, e as discussões, nas quais Vianna coerentemente se posicionou, indicam o vínculo intrínseco das diferentes propostas no âmbito das manifestações artísticas com os posicionamentos políticos dos agentes envolvidos. Nesse sentido, o pcb — aglutinador das propostas esquerdistas nos anos de 1950 até o fatídico 1964 — teria profundos abalos, que incluíram crítica ferrenha a seus encaminhamentos e dissidências. A aposta na política de alianças se mostrou o principal erro tático das propostas do partido, e a esperança depositada na capacidade revolucionária do povo se esvaiu por completo em abril de 1964.
A imposição do estado de arbítrio leva à necessidade de posicionar-se. Nesse primeiro momento, a conclamação dos artistas contra o golpe é unívoca. Em específico, os artistas do teatro respondem ao impasse com espetáculos cujo objetivo era mostrar indignação.[6] Contudo, ao longo da década de 1960, as cisões nas propostas esquerdistas se evidenciam, e seu principal expoente se mostra na oposição entre os que entendiam que o momento era de enfrentamento — e se enfileiraram nos ideais que defendiam a luta armada na cidade e no campo — e os que, contrariamente, seguiram as determinações do partido, orientadas por uma resistência organizada e pacífica. Os encaminhamentos dessas diferentes frentes podem ser examinados, a princípio, na fala de Carlos Marighella; depois, na determinação do PCB.
Quando nós recorremos aos atos terroristas, sabemos que eles não nos levam diretamente ao poder. Todo ato terrorista revolucionário é uma operação tática tendo por objetivo a desmoralização das autoridades, o cerco das forças repressivas, a interrupção de suas comunicações, o dano às propriedades do Estado, dos grandes capitalistas e latifundiários. Os atos terroristas revolucionários e a sabotagem não visam a inquietar, amedrontar ou matar gente do povo. Eles devem ser utilizados como tática para combater a ditadura que lança contra o povo as organizações de extrema direita […]. Ao terrorismo que a ditadura emprega contra o povo, nós contrapomos o terrorismo revolucionário. (Marighella, 1999, p. 106)
Na situação atual, nossa principal tarefa tática consiste em mobilizar, unir e organizar a classe operária e demais forças patrióticas e democráticas para a luta contra o regime ditatorial, pela sua derrota e a conquista das liberdades democráticas. A realização dessa tarefa está estreitamente ligada aos objetivos revolucionários em sua etapa atual e ao desenvolvimento da luta da classe operária pelo socialismo. […] Nas lutas em defesa dos interesses e reivindicações das massas contra o regime ditatorial, deve-se aproveitar ao máximo os meios de divulgação legais e realizar campanhas políticas e movimentos reivindicatórios com base nas possibilidades legais existentes. (Carone, 1982, p. 72–73; 78)
É evidente a diferença das propostas que encampam o referido momento. Se o movimento armado ganha força na cidade e no campo, aqueles que optam pela resistência democrática insistem na conscientização. Vianinha se alinha com a segunda proposta, e a busca pela atuação nas brechas — como indica o último trecho citado do 6º congresso do partido — foi preocupação constante do autor. É preciso notar, porém, que os segmentos armados foram duramente reprimidos pelo governo militar e, no início de 1970, já estariam quase dizimados de forma cruel. Portanto, o encaminhamento das questões no âmbito da conscientização, seja pela arte, seja pela participação ativa de segmentos da Igreja Católica nas organizações de bairro, mostrava ser a única saída. Embora nesse momento Vianinha veja seu engajamento político ser questionado, até o fim defendeu sua opção pela luta das liberdades democráticas. É dessa época a escrita de sua peça Papa Highirte, cuja trama reflete sobre a incoerência da opção armada. Ambientada em um país fictício da América Latina, o texto evidencia os problemas de um país sem democracia e a inviabilidade da guerrilha.
Os fins dos anos de 1960 e a década de 1970 foram momentos de debate acerca do experimentalismo formal que ganha espaço no teatro brasileiro. Tal tendência à transformação estética — ou seja, a busca por novas formas de linguagens[7] no teatro — ocorre, sobretudo, a partir da encenação de O Rei da Vela, texto de Oswald Andrade de 1933 apresentado pelo Teatro Oficina, sob a direção de José Celso Martinez Correa, em 1968.[8] O espetáculo provoca polêmica e abre espaço para manifestações que marcaram as disputas estéticas da categoria artística teatral; os debates evidenciavam a posição dos que acreditam que aquela experiência formal era linguagem pretendida pelo teatro e a dos que não concordam com as experiências que levavam a essa nova linguagem.
É no âmbito dessas questões que o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho se posiciona contrariamente à ideia de que a estética antecipa a discussão temática. No extremo oposto de uma “guerrilha teatral”,[9] Vianinha acredita que uma forma estética será tanto mais elaborada quanto maior for seu envolvimento com a realidade. Ainda no cpc, o dramaturgo entendia que já se fazia necessária uma discussão formal séria.[10] Seu posicionamento se torna mais agudo com a perplexidade causada golpe, pensada em Moço em Estado de Sítio (1964). A escrita da peça é sintomática quanto a evidenciar que a opção do dramaturgo pela Resistência Democrática não pressupõe uma arte do partido: sua obra tem as marcas do seu tempo; não as determinações do PCB.
Situar essa questão se mostra fundamental. Na análise dos textos teóricos de Vianna é possível perceber o militante engajado nas causas consideradas por ele como fundamentais no seu momento; prevalece a ideia do partido de uma frente ampla e organizadora. Porém, sua obra teatral deixa entrever que, muitas vezes, a crítica aos encaminhamentos e ao papel do intelectual frente às impossibilidades do sistema eram temas centrais. Como já apontava Lukács em sua Introdução a uma estética marxista,[11] a práxis artística é infinitamente mais rica que a teorização (mesmo que aqui o intuito de Vianna com seus textos teóricos não seja um tratado de estética, mas refletir sobre o artista na sociedade).
Tendo como horizonte as disputas estéticas no meio artístico, Vianna escreve, em 1968, o artigo Um pouco de pessedismo não faz mal a ninguém,[12] onde aponta as cisões criadas dentro da categoria teatral pelos referidos posicionamentos. O autor aponta as dificuldades de ordenar coerentemente as insatisfações da classe artística brasileira. Segundo ele, a ordenação dessas insatisfações coube, sobretudo, aos profissionais ligados a um determinado tipo de teatro: aquele que não perde de vista a historicidade. Assim, entende que existem dois setores no teatro. Um, já mencionado, o teatro caracterizado como “engajado”:
[…] seria aquele capaz de enfrentar todos os desacertos e descontinuidades da sensação estética, advindos da tentativa de criação de uma nova linguagem apta a apreender mais profundamente as novas formas que surgem no convívio social de nossa época. (VIANNA FILHO, 1999, p. 120)
Outro, o teatro “desengajado”:
[…] que vê com ceticismo a participação. Os desacertos e a descontinuidade estéticos parecem-lhe produto de uma posição a priori, de uma parcialidade, de uma posição doutrinária, estranha à arte. Preferem pesquisar e trabalhar no sentido de cada vez mais dominar os segredos da fluidez estética, sem se preocupar basicamente com o mundo significativo que elaboram. (VIANNA FILHO, 1999, p. 120)
Assim, Vianinha aponta para a constante interpenetração dessas tendências. Ele não reconhece no primeiro a isenção de aprimoramentos estéticos, assim como não reconhece no segundo o alheamento quanto a questões sociais.
Nomeados os setores, verifica-se que, em momentos importantes da realidade nacional, o teatro “engajado” tomou para si a responsabilidade de interpretar aquelas insatisfações, e em muitos casos estas se mostraram simplificadas. Portanto, a fim de revisar esses períodos (artigos que datam da fase do Teatro de Arena) e entender as atuais disputas no meio artístico é que Vianna assume a tarefa de olhar outra vez para os caminhos do teatro até ali. Para tanto, sua análise retrocede ao Teatro Brasileiro de Comédia (tbc). Vianinha percebe que, naquele momento, atribuir ao tbc o rótulo de teatro esteticista e burguês seria simplificação. Ao contrário, ele entende que:
[…] reduzir esse boom do teatro a um crachá da burguesia, a um “divertimento de bom gosto” (como lembra Luís Carlos Maciel), a um “esteticismo”, parece-me insuficiente. O ecletismo do repertório (Pirandello, e Gorki; Miller e Anouilh) revela um descaso cultural, uma desnecessidade de programação ideológica, ou, ao contrário, revela uma frenética necessidade de apurar o domínio ideológico, a ambição da universalidade, a tentativa de preparação para responsabilidades mais altas de produção e criação do que as de simples exportadores? A tentativa de começar a falar, ainda que contraditoriamente, a sua própria voz? Se o centro de decisão começa a se deslocar, é preciso estar preparado para decidir. (VIANNA FILHO, 1999, p. 121)
Assim, na reflexão sobre o tbc, Vianna faz uma revisão não só do teatro profissional no Brasil, como também dos textos que escreveu. Ao atribuir ao tbc a profissionalização do teatro e, portanto, um caráter de profunda importância ao que viria depois, ele começa a apontar para o tema principal do artigo: as experiências artísticas não deverem ser entendidas como rupturas, vanguardas que esquecem o passado; antes, as experiências devem ser entendidas como único caminho.
Para justificar sua análise, ele ainda reflete sobre o papel da burguesia nacional (a mesma responsável pelos encaminhamentos culturais daquele momento, como o próprio tbc e a Companhia de Cinema Vera Cruz: ambas obras de industriais). Segundo o autor, esta ocupa papel fundamental no que se refere à modernização do país naquele momento, pois:
Durante esta mesma época, a burguesia, dividida e contraditória, lutava pelo monopólio estatal do petróleo, apoiava a não-participação do Brasil na Guerra da Coréia, instituía o confisco cambial, publicava o jornal Última Hora, e elegia Juscelino Kubitschek, que, embora formulando uma ilusória coexistência entre o desenvolvimento e a estrutura econômica do país, leva à prática a autoconfiança nacional. (VIANNA FILHO, 1999, p. 122)
Note-se que, no momento da escrita de Um pouco de pessedismo não faz mal a ninguém, a crença na revolução encontra-se inevitavelmente abalada. Desde 1964, as críticas ao pcb tornaram-se cada vez mais ácidas. Mas, nesse momento, ao se reportar para a década de 1950, Vianna ainda realça a aliança das forças democráticas revolucionárias com a burguesia nacional, proposta presente no IV Congresso do PCB (1954):
No que concerne às relações com a burguesia nacional, o Programa do Partido não só não ameaça seus interesses como defende suas reivindicações de caráter progressista, em particular o desenvolvimento da indústria nacional. Essa posição é acertada, decorre de uma justa compreensão do caráter da revolução brasileira em sua primeira etapa, quando as necessidades já maduras do desenvolvimento da sociedade brasileira, que exigem solução imediata, são exclusivamente as de caráter antiimperialistas e antifeudal. A burguesia nacional não é, portanto, inimiga; por determinado período pode apoiar o movimento revolucionário contra o imperialismo e contra o latifúndio e os restos feudais. (VIANNA FILHO, 1999, p. 132)
Mesmo que essas conquistas se mostrem rarefeitas no teatro, apresentam-se para Vianna “sob o signo da participação e da luta”, num momento em que a afluência de público alcançou índices altíssimos e autores conquistaram legitimidade (por exemplo, Nelson Rodrigues e Jorge Andrade). A partir de 1958, Vianna marca o declínio desse teatro, declínio natural, pois as formas de expansão da burguesia, também, se esgotam. O Teatro de Arena surge na perspectiva de transformação, renovação e reação do teatro brasileiro. O movimento de reação do Arena, também surgido na classe média, volta-se contra o passado do teatro de forma geral e é contrário ao esteticismo e ao teatro burguês: as críticas recaiam quase sempre no seu antecessor direto: o tbc. Nesse sentido, Vianna aponta as diferenças que marcam o Arena contraposto ao tbc. Agora, o autor brasileiro ganha os palcos e o teatro se orienta pelo trabalho em equipe — portanto, sai de cena o ator “estrela”; e mais: surgem os seminários que tanto contribuiriam para formar esses profissionais.
Posto isso, os limites desse teatro não demoraram a aparecer. “Como empresa era um fracasso”; a conjuntura do país não acompanhava tamanho avanço. “As empresas, estranguladas, não cumpriram sua tarefa principal, que era a de crescer, aumentar suas plateias, enriquecer seus espetáculos, tirar-lhes o sabor da experiência”.[13] Essa característica levava o Arena a se restringir cada vez mais, pois o público, também, se tornava restrito —público esse ideologicamente comprometido: falava-se de povo, não para o povo. Percebia-se que os temas eram ingênuos e que uma realidade que se transformava a cada dia exigia mais complexidade.
Daí ao isolacionismo foi um passo. Como sói acontecer, o revolucionário que ainda não consegue uma tática adequada à sua estratégia procura, no primeiro impulso, o isolamento, como forma de se instalar, ainda que abstratamente, na proximidade do mundo social que almeja. Como sói que acontecer, o revolucionário volta-se não mais contra o seu inimigo principal e, sim, contra seus mais próximos aliados. (VIANNA FILHO, 1999, p. 123)
Sob o signo desses limites, surge a ideia do cpc da une, impulsionada pela busca de público e discussão efetiva de temas que tocassem esse povo. Assim como no início do Arena, que se volta contra o tbc, esse novo teatro (cpc) faz dura crítica ao Arena, taxando-o de irremediavelmente pequeno-burguês. Do tbc à criação do Arena e do cpc, o itinerário traçado por Vianna — atento ao fato de que as interpretações ficaram a cargo do teatro “engajado” — evidenciava propostas sempre guiadas pela idéia de ruptura com o passado. Noutros termos, para que o Teatro de Arena se afirmasse, era preciso negar o que veio antes e para que o cpc ser afirmasse, era preciso criticar o Arena. Esse histórico dos grupos objetivava à compreensão do seu presente. Segundo Vianna, as contradições criadas no teatro naquele momento (1968) eram absurdas. O essencial era organizar-se contra um inimigo maior: a política cultural dos governos militares. Para Vianna, a contradição reside em todo o teatro e no total estrangulamento das possibilidades de se montar um espetáculo em tais circunstâncias. Portanto, em resposta a Luiz Carlos Maciel, ele reconhece que é preciso creditar o devido valor às experiências do passado, assim como às do presente. Maciel desloca as atividades teatrais dos empreendimentos capitalistas; para ele os artistas (teatro):
[…] em nada contribuem para o processo de produção material. São parasitas que dividem a renda per capita do País sem contribuírem em nada para seu Produto Nacional. Economicamente constituem um peso morto. Seu trabalho é um artesanato de interesse e consumo limitados. Embora eles possam reduzir sua arte e eles próprios a meras mercadorias, sujeitas às leis sagradas da oferta e da procura, as cotações baixas que ambos recebem na bolsa de valores do poder econômico os hão de condenar a uma insignificância que justifica, no quadro de interesses capitalistas a sua marginalidade. (Maciel, 1968, p.71-72)
Vianna o rebate, ressaltando que o inflacionamento dos teatros, o alto custo dos aluguéis etc. favorecem, sim, a uma conjuntura econômica capitalista. Os interesses são cada vez mais invertidos, e a própria atividade artística que deveria servir ao autoconhecimento — ser, portanto, subvencionada pelo Estado — importa apenas como mercadoria e, por consequência, precisa gerar lucros. O dramaturgo trata a questão assim:
O teatro, ao contrário do que afirma Maciel, é uma mercadoria industrializável e submetida, porém, na política cultural do governo não somente deste governo que só fez pisar no acelerador a um processo de extinção. […] a área demográfica atingida pelos teatros diminuiu; o processo inflacionário determina uma aplicação de capital cada vez maior na produção de espetáculos que só pode ser coberto em casos de êxito retumbante ou então, ampliando o mercado, viajando. (VIANNA FILHO, 1999, p. 125)
Vianna busca respostas para as questões objetivas do teatro naquele momento e aponta para a necessidade de subvenções do Estado e a importância de se ocuparem as salas de teatro. Em outras palavras, ele se propõe a pensar nos problemas imediatos que impedem as peças de chegarem ao palco, mesmo ciente que as dificuldades remontam ao passado. Maciel, ao contrário, discute em outro âmbito: suas críticas assinalam a impossibilidade de uma proposta revolucionária encampada pela categoria teatral e entendem o teatro fora do circuito comercial mais amplo. Para Vianna, essas críticas são infundadas por não conseguirem reconhecer a luta que o teatro trava há décadas para se manter. Nesse sentido, ele ressalta o fato de o Grupo Opinião não ser mencionado por Maciel, e cita espetáculos produzidos pelo grupo, tais como Pois é, com Vinicius de Moraes, Maria Bethânia e Gilberto Gil; Se correr o Bicho pega se ficar o Bicho come, do próprio Vianna; e Liberdade, Liberdade. Pois, na ânsia de crítica à condição atual do teatro, Maciel, segundo Vianna, esquece-se do que está acontecendo no momento.
Sobre a acusação de que o Opinião teria apenas propósitos políticos, Vianna afirma que a proposta desse grupo recai, sobretudo, na pesquisa de novas linguagens. Desse modo, refere-se à busca da qualidade empreendida pelo Opinião:
Estamos convencidos de que o trabalho cultural, como todo trabalho, tem por exigência básica a qualidade. Mas, sobre o conceito de qualidade, pesam inúmeros equívocos. Do nosso ponto de vista, a qualidade de uma obra resulta da formulação adequada da experiência na complexidade de suas contradições, isto é, na sua natureza dialética. Conclui-se daí que uma visão estreita do mundo não pode produzir boa obra, pelos simples fato de que, na sua limitação, é incapaz de revelar o verdadeiro conteúdo da realidade de que trata. Assim como não basta estar teoricamente armado de uma visão justa para obter resultados artisticamente positivos, pode um escritor alienado criar boa arte, desde que, no processo formulativo — no fazer —, consiga ampliar sua visão o suficiente para abranger as contradições inerentes a ela. O que não quer dizer que as obras estejam despidas de caráter ideológico ou de classe, mas que elas podem ter qualidade apesar disso. A liberdade é, portanto, condição necessária do trabalho criador. (VIANNA FILHO, 1999, p. 127)
Ao enfocar as propostas estéticas do Opinião, fica clara a preocupação de Vianna com a pesquisa sobre novas linguagens. Como mencionamos, desde o cpc as inquietações relativas à acuidade da forma tomavam corpo em seus escritos. Mas a complexidade da sociedade no pós-64 se mostrou fundamental para novas formas de reflexão sobre o homem brasileiro. Era necessário olhar com acuidade para o quadro social a que esse homem estava agora submetido.
Nessa ótica, a análise do artigo de Vianna traz à tona uma questão central na sua dramaturgia pós 1964: a necessidade de atuar nas brechas. Não é por acaso a insistência do autor em salientar espetáculos que levem o público ao teatro. Vianinha entende que o estrangulamento da economia e da censura tornou quase impossível a prática teatral; logo, a simples existência de espetáculos deve ser comemorada. A partir de 1964, o tema da revolução dá lugar às ideias da Resistência Democrática. E a opção de Vianna por esse caminho se vincula intrinsecamente às propostas do pcb. Mas como a opção política se revela na sua criação estética? A produção de Vianna no pós-golpe é primeiramente marcada por uma diversidade de propostas: desde a escrita de peças com personagens psicológicos até experiências que retomam algumas características do cpc, como Se correr o Bicho pega se ficar o Bicho come e Brasil e cia.
Nessa diversidade que marca os trabalhos de Vianinha, merece atenção sua atuação no cinema. Seus trabalhos mais expressivos foram nos filmes O Desafio (1965), de Paulo César Saraceni, e Um Homem sem Importância (1970), de Alberto Salvá. No primeiro, a temática aproxima-se da discussão empreendida em Moço em Estado de Sítio: Marcelo — personagem protagonizado por Vianna — representa um jovem jornalista de classe média que, após o golpe, perde seus referenciais, mergulha em uma crise existencial e questiona seus posicionamentos, em atitudes ora passivas, ora anárquicas. No segundo, o personagem Flávio procura dar novo rumo a sua vida.
Ainda na década de 1960, Vianna inicia seus trabalhos para a tv, de início na Tupi, onde escreveu programas de entrevistas e minipeças (para o Programa de Bibi Ferreira); depois na tv Excelsior, com os Tele Teatros — nessa emissora, foi premiado O Matador, de sua autoria. O trabalho de Vianinha para tv, que não ficou isento de críticas, acompanhou um momento de grande efervescência e consolidação de um mercado de bens culturais no país. Tal consolidação — é preciso atentar — ocorreu, obviamente, sob o signo de um estado de censura perceptível, sobretudo, no meio televisivo. Mas esse aumento se referia a certos setores e projetos artísticos. Basta lembrar que o teatro vivia, talvez, seus piores anos quanto à censura econômica e política.
Renato Ortiz, ao pensar na realidade brasileira das décadas de 1960 e 1970, aponta como aspecto fundamental dessa consolidação o projeto de Integração Nacional, concebido pelos governos militares. Diz ele: “certamente que os militares não inventam o capitalismo, mas 64 é um momento de reorganização da economia brasileira que cada vez mais se insere no processo de internacionalização do capital”.[14] Nesses termos, a modernização empreendida nessas décadas no que se refere às comunicações previu a ligação do país via satélite pela embratel. Este projeto objetivava chegar a maior quantidade possível de brasileiros por meio da tv, pois isso facilitaria a propaganda do governo e divulgaria novas maneiras de vida viabilizadas pela variedade de novos produtos que surgiam no mercado e precisavam ser divulgados. A iniciativa do governo era concentrar cada vez mais “a transmissão eletrônica de recreação, informação e educação nas mãos da iniciativa privada, alicerçada numa sólida estrutura de empresa moderna”.[15]
Em sintonia com essas perspectivas e com uma maior capacidade de se ajustar às metas propostas pelo Estado (quando comparada com as outras emissoras), a Globo[16] se afirma como aglutinadora desse ideal.
A tv vive de um universo quantitativo; essa idéia, e a de integração nacional, acabaram com a imagem de programas específicos para cada região. […] O maior mal da televisão brasileira sempre foi a falta de unidade no comando das empresas. […] A Globo tratou de formular uma programação que induz a esse universo global. (WALTER CLARK, 1974, p. 13)
A idéia de “integração nacional” encontra na Rede Globo de Televisão a empresa capitalista capaz de unificar o país do Oiapoque ao Chuí. A nacionalização da emissora em 1968 e o completo desligamento da Time Life por volta de 1971 provoca um crescimento que acompanha o clima de euforia. Mesmo que, nesse momento, a Globo não conte com capital interno capaz de agilizar seu crescimento, pois se endividou ao se desligar da empresa estrangeira, a emissora se beneficia da injeção de recursos — todos geridos pelo Estado, seja a transmissão de imagens, criação de rede de satélites a cargo da embratel etc.
Embora as empresas estrangeiras estivessem presentes desde 1930, é com a emissora forte e a necessidade de tornar visível o ideal do “milagre econômico” que a publicidade se consolida o país. Junta-se, portanto, uma nova forma de fazer tv a uma publicidade mais eficiente e lucrativa para a emissora. Basta lembrar que, anteriormente, o papel das empresas publicitárias era influir diretamente nas programações. A emissora oferecia o que era primordial à consolidação das agências: garantias de audiência. E assim “houve um momento em que a propaganda chegou a ser melhor do que a própria televisão brasileira. Quer dizer, o ideal estético da propaganda chegou a se constituir num modelo” (JORDÃO, 1974, p. 107).
Essas relações deixam entrever que, nesta sociedade, não há espaço para lutas ideológicas. A idéia de mercado que “atinge” o Brasil de norte a sul é unificadora das propostas que chegam até a população. Portanto, para que esse processo tão complexo aconteça deve haver pré-disposição: uma sociedade que aceite participar do jogo proposto pelo consumo. Como diz Vianinha,
Para reduzir uma sociedade de mais de cem milhões de pessoas a um mercado de vinte e cinco milhões de pessoas é preciso um processo cultural muito intenso, muito elaborado e muito sofisticado, muito rico, para manter, para fazer com que as pessoas aceitem ser parte de um país fantasma, um país inexistente, de um país sem problemas, […] porque parece que realmente precisa, para circunscrever a minha visão de existência social a esse círculo muito fechado, da duplicação dos produtos de consumo.(VIANNA FILHO, 1999, p. 181)
Para ele, o solapamento da população cada vez mais alienada em relação aos problemas sociais de seu tempo resulta da profunda transformação dessa sociedade que passa a se pensar só em termos mercadológicos. O que está em jogo é a competição e a necessidade/vontade de ascensão individual. E para legitimar essa sociedade os meios de comunicação exercem papel fundamental. Mas é necessário — aponta Vianna — haver profissionais que desempenhem essa função, pois, se em um momento anterior o intelectual de classe média produzia ao largo de um mercado consumidor (como o estabelecido neste momento) — ou seja, se tinha um público muito restrito para suas obras —, nessa “nova sociedade” ele é convocado a usar seus talentos para efetivar os meios.[17]
Aqui se impõe uma questão: como as transformações na sociedade brasileira integraram a obra de Vianinha? A opção por atuar nas brechas, por uma dramaturgia para ser encenada e pela discussão de problemas urgentes então deu vazão à escrita de A Longa Noite de Cristal, a peça leva aos palcos uma questão que passava a fazer parte do cotidiano de Vianna naquele momento: como uma pequena emissora de televisão assimilou as mudanças nos meios de comunicação? Nessa época o dramaturgo trabalhava na tv Tupi, que enfrentava sérios problemas financeiros.
A peça enfoca os conflitos de Celso Almeida Gagliano, chamado Cristal em razão da voz exuberante desde quando era radialista esportivo. Profissional de rádio absorvido pela tv, Cristal é um jornalista “às antigas”, acostumado a trabalhar no improviso. Contudo, sua principal característica — o improviso — passa a não fazer sentido em um meio de comunicação que, a cada dia, fica mais complexo. Assim, de repórter participante passa a mero leitor de notícias, sufocado por um ambiente de trabalho que, cada vez menos, necessita de sua criatividade e onde sua voz não importa, pois os padrões de gosto se transformam, e se mostra mais lucrativo investir em vozes sensuais e decotes — o que, aliás, representa Flávia, jornalista com quem divide a apresentação do telejornal.
O drama central é desencadeado quando Cristal lê uma denúncia contra um hospital e um médico que teriam dispensado uma mulher com dores de parto, que teria dado à luz em uma praça em frente ao hospital. Essa cena foi vista por Cristal, que passava de carro ali. Contudo, o hospital denunciado por ele é um dos patrocinadores da estação, e o personagem é obrigado a desmentir a notícia; como se recusa a fazê-lo, Flávia lê. Mas, ao fim da leitura, Cristal a interrompe e diz ser verdade o acontecido. Tal atitude lhe custa o emprego e o aumento de seus tormentos. Ele se afasta cada vez mais da vida: os problemas profissionais e pessoais como a separação da mulher, a impotência sexual e a falta de diálogo com o filho — apresentados em flashback — levam-no a tentar o suicídio, mas ele fracassa.
Por meio do drama de Cristal, Vianna aponta as complexidades que tornam a televisão um meio de sucesso. O autor cria um personagem alheio a essa complexidade, que não consegue olhar à sua volta, que mergulha nos problemas individuais e esquece o todo em que estão incluídos. Nesse caso, esse “todo” são as transformações dos meios de comunicação e um avanço cada vez mais significativo dos mecanismos de massificação. A discussão das questões referentes aos meios de comunicação e a uma sociedade de massas são aqui apontadas pela primeira vez na dramaturgia do autor.
[1] Apresentado em 11 de dezembro de 1964, com direção geral de Augusto Boal, encenação de Nara Leão, João do Vale e Zé Kéti e texto final de Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e Armando Costa; o espetáculo tinha a intenção de ser um “show-verdade”: contar histórias reais dos protagonistas, cada qual representando a si mesmo e buscando uma identificação de classe.
[2] Vieira faz uma análise detalhada dos propósitos estéticos do cpc e uma reflexão cuidadosa sobre sua peça Brasil Versão Brasileira — ver: Viera, Thais Leão. Vianinha no Centro Popular de Cultura (cpc da une): nacionalismo e militância política em Brasil — Versão Brasileira (1962). 2005. 154 f. Dissertação (Mestrado em História) — Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2005.
[3] A maior parte do trabalho desses críticos constitui uma análise densa do teatro brasileiro, e dentre elas pode-se destacar:
- Magaldi, Sábato. Iniciação ao teatro. São Paulo: São Paulo, 1965;
- Michalski, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: Zahar, 1985;
- Michalski, Yan. O palco amordaçado: 15 anos de censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Avenir, 1979;
- Mostaço, Edélcio. Teatro e política; Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Proposta Editorial, 1982;
- dentre outros.
[4] O golpe de 1964 abala as bases do pcb: a crença na revolução socialista comandada pelo proletariado recebe duras críticas nesse momento, cujo alvo era, sobretudo, a proposta de aliança de classes. O partido acreditava que setores específicos da burguesia — denominada nacional, dados os seus interesses — se oporiam ao imperialismo, em especial o dos Estados Unidos. Tal junção de forças não previa o comando nas mãos dessa classe; tão logo se resolvesse a questão e ocorresse a mudança de sistema político, o mando deveria voltar às mãos do proletariado, que, com apoio do campesinato e das pequenas camadas urbanas, daria o tom para se estabelecer o socialismo. Além disso, as táticas de organização popular do pcb não mostraram tanta eficácia, visto que o povo não enfrentou a luta no momento de perigo, 1964. Logo, a crítica se estendeu à eficácia de uma vanguarda intelectual que instrumentalizasse as massas. Ao reavaliar e tentar entender a derrota em 1967, em seu VI Congresso, o partido continuava a apostar que uma frente ampla de mobilização deveria ser seu objetivo central. Noutros termos, a vanguarda continuaria a cumprir seu papel: buscar nas brechas oferecidas pelo sistema uma atuação coerente. Ver: Carone, Edgar. O p.c.b. 1964 a 1982. São Paulo: Difel, 1982.
[5] A mudança temática elaborada primeiramente em Moço em Estado de Sítio provoca, também, uma mudança formal. Os personagens têm mais densidade psicológica de seus conflitos sociais e individuais. Em contraposição a essa concepção pode-se pensar no personagem estereotipado, como na peça Brasil versão brasileira, escrita por Vianna à época do cpc. Nela, os personagens não apresentam conflitos interiores, pois representam estratos sociais: proletários, capitalistas, imperialismo etc.
[6] Segundo Roberto Schwarz, após o golpe as manifestações teatrais não cessaram; ao contrário: marcam esse momento encenações que se mostraram fundamentais à história do teatro brasileiro. “Entretanto, para a surpresa de todos, a presença cultural da esquerda não foi liquidada naquela data, e mais, de lá para cá não parou de crescer. A sua produção é de qualidade notável nalguns campos, e é dominante. Apesar da ditadura da direita há relativa hegemonia cultural da esquerda no país.” In: Schwarz, Roberto. Cultura e política. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p. 7. Um exemplo dessa continuidade foi o Show Opinião: primeiro espetáculo após a instauração do estado de arbítrio, apresentado em 11 de dezembro de 1964, com direção geral de Augusto Boal, encenação de Nara Leão, João do Vale e Zé Kéti, e texto final de Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes e Armando Costa. Pretendiam que o espetáculo fosse um “show-verdade”, que contasse histórias reais dos protagonistas, cada qual representando a si mesmo e buscando uma identificação de classe.
[7] As experiências formais mencionadas foram verificadas em outras artes como no filme Terra em Transe, de Glauber Rocha — aliás, essa película inspira a referida montagem de O Rei da Vela. Na música, são percebidas nas criações de Caetano Veloso e Gilberto Gil; nas artes plásticas, na instalação Tropicália, de Hélio Oiticica. Assim, a idéia de um “movimento tropicalista” composto por essas manifestações é uma constatação a posteriori; esse trabalho de análise e entendimento como “O Tropicalismo” deve-se à recepção das obras e à consequente observação como conjunto — ver: Patriota, Rosangela. A cena tropicalista no Teatro Oficina de São Paulo. História, São Paulo, v. 1, n. 22, 2003. A radicalização dessa tendência se verifica na montagem do espetáculo Roda Viva, também por José Celso, nesse mesmo ano. O texto de Chico Buarque se transforma no baluarte do teatro de agressão, linha que conduz a proposta do diretor. Assim, as apresentações dessas novas experiências formais se destacaram nas críticas de jornais e em artigos em periódicos do momento. Os espetáculos que encampavam a busca dessas novas linguagens foram denominados irracionalistas, experimentalistas e voluntaristas; ao passo que um teatro que procurou seguir um caminho em que o estético não era condição a priori denominou-se como racionalista. A expressão “teatro de agressão” é pensada por meio dos estudos de Antonin Artaud, que busca uma participação direta da plateia: agredida, esta é obrigada a sair do imobilismo. As experiências de pensadores estrangeiros não se finalizam em Artaud: também Grotowski tem influências na busca de uma nova linguagem cênica pretendida pelo Oficina. A encenação de Roda Viva, feita fora do grupo, conta com a participação apenas de Zé Celso. A montagem do texto acirra uma divisão entre os membros do Oficina, e o papel do coro na peça é fundamental para tal divisão. O diretor leva para o grupo a disputa: coro versus representativos, que encontra seu ápice na montagem de Galileu Galilei.
[8] Barbosa, Kátia Eliane. Teatro Oficina e a encenação de O rei da vela (1967): uma representação do Brasil da década de 1970 à luz da antropofagia. 2004. 145 f. Dissertação (Mestrado em História) — Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2004.
[9] O diretor José Celso situa sua crítica ao público de teatro nesses anos. Constata que irreversivelmente, pelo menos nesse momento, o público é composto pela classe média; daí a pretensão de fazer um teatro capaz de atingi-lo, fazê-lo sair do seu mundo amorfo; é preciso agredi-lo na moral, nos ideais e nas condutas. Assim, em contraposição a um teatro de educação popular, ele traz à tona a deseducação e um teatro de agressão e crueldade, para, por meio de influências estéticas internacionais, entender a arte como linguagem, a “superteatralidade, a superação mesma do racionalismo brechtiano”, que pressupõe, em essência, a iniciativa individual. Marca-se aqui uma diferença fundamental quanto ao teatro pensado até então: os artistas que optaram pelas determinações do partido — e validaram a idéia de atuar no possível criando arte que conscientizasse amplas camadas da população — não aprovam uma transformação da sociedade só no âmbito individual. A discussão mostra a implosão do entendimento do público como classe social, pois a eficácia do teatro da violência que não pressupõe reação da platéia como classe será medida apenas no sentido da “guerrilha teatral”. A expressão usada por Zé Celso mostra como os posicionamentos estéticos são, também, políticos; a arte, ao refletir sobre dada realidade, cria as próprias contradições. Assim, as opções formais pretendidas pelos artistas se revelam muito mais que uma discussão sobre transformações artísticas; a questão estética é primordialmente histórica: a maneira de contar — produzir uma obra de arte, na escrita do texto ou na encenação — está intrinsecamente ligada ao tempo histórico a que fala, mesmo que as respostas dadas sejam elaboradas sob roupagens tão diversas. Ver: Correa, José Celso. “O rei da vela”: Manifesto Oficina. In: Arte em Revista, ano 1, n. 2, 2ª edição. São Paulo: Kairós, 1979.
[10] “O CPC (Centro Popular de Cultura), no seu esvaziamento, já nos deu as indicações de que o artista tinha que participar lutando no campo das transformações estéticas, na atualização cultural do teatro em relação ao seu tempo, em relação aos seus problemas mais complexos, as suas ambições as mais altas. Quer dizer: em nome do povo o artista tem que ambicionar a mais alta complexidade e não o contrário.” Entrevista de Vianinha a Luís Werneck Vianna. In: Peixoto, Fernando. Op. cit. p. 163.
[11] Lukács, Georg. Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
[12] O artigo de Vianna discute as questões estéticas do seu momento e procura responder às acirradas disputas no meio artístico, sobretudo ao artigo de Luís Carlos Maciel “Quem é quem no teatro brasileiro: estudo sócio-psicanalítico de três gerações”, ambos publicados em: Revista Civilização Brasileira, Caderno Especial nº 2 (Teatro e Realidade Brasileira), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, julho de 1968. O artigo de Vianna foi publicado depois em: Peixoto, Fernando. Op. cit. p. 120–130. No seu artigo, Maciel inicia o balanço da classe teatral brasileira com a pergunta “Por que se faz, hoje, no Brasil, o tipo de teatro que se faz e não qualquer outro?”. Na análise, ele divide a categoria teatral em três gerações: uma anterior ao Teatro Brasileiro de Comédia (tbc), o próprio tbc, e outra posterior a este. A princípio, sua tese aponta para o constante caráter de marginalização dos artistas, fato facilmente explicável, segundo ele, pois teatro não é mercadoria que interessa a uma sociedade capitalista. Para tanto, caracteriza o teatro no Brasil por meio das condições psicológicas de seus artistas mergulhados em uma constante marginalidade mesmo antes de optarem pela carreira. Essa explicação psicanalítica explicita os problemas que se mostram irremediáveis para o autor e cuja solução parece apontar para a supressão do que foi feito até então e a inauguração de outra forma de pensar teatro.
[13] Vianna Filho, Oduvaldo. Um pouco de Pessedismo não faz mal a ninguém. Peixoto, Fernando. Op. cit., p. 123.
[14] Ortiz, Renato. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 144.
[15] Kehl, Maria Rita. Um só povo, uma só cabeça, uma só nação. In: Carvalho, Elisabeth; Botelho, Isaura; Ribeiro, Santuza Naves; Kehl, Maria Rita. Anos 70: televisão. Rio de Janeiro: Europa, 1979–1980, p. 3.
[16] A trajetória da emissora mereceria capítulo à parte, dadas a dimensão de sua influência e a forma como se mantém no mercado como líder de audiência até hoje. Mas, ante a impossibilidade de tal empreitada e restando o consolo de que muitos pesquisadores se debruçaram sobre o tema, o que interessa na trajetória da Globo para se compreender seu papel aglutinador nas décadas de 1960 e 70 é sua ligação com o grupo norte-americano Time Life, que se une à emissora a partir de 1962 e redimensiona a concepção de televisão no país. São enviados para o Brasil nomes como Walter Clark, dentre outros, que permaneceram aqui durante anos e foram responsáveis por dar outro formato ao veículo. Esse acordo com a empresa Time Life rendeu à Rede Globo muitos inquéritos por causa da legislação brasileira, que não permitia essa presença de estrangeiros. Só em 1968 a emissora se nacionaliza. Sobre isso, ver:
- Simões, Inimá F.; Costa, Alcir Henrique; Kehl, Maria Rita. Um país no ar: história da tv brasileira em três canais. São Paulo: Brasiliense, 1986;
- Borelli, Sílvia H. S.; Priolli Gabriel. A deusa ferida: porque a Rede Globo não é mais a campeã absoluta de audiência. São Paulo: Sumus, 2000;
- Carvalho, Elisabeth; Botelho, Isaura; Ribeiro, Santuza Naves; Kehl, Maria Rita. Op. cit.
- Bial, Pedro. Roberto Marinho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004; dentre outros.
[17] Essa discussão é sistematizada na apresentação do texto “Gota d’água”, de Chico Buarque e Paulo Pontes, em virtude da sua publicação, que buscam entender as transformações estéticas e sociais que levaram à criação de abismos entre a intelectualidade e o povo. Na referida peça, uma adaptação da tragédia Medeia inspirada nas propostas de Vianinha os autores objetivam recuperar o povo no teatro brasileiro. Pontes, Paulo; Hollanda, Francisco Buarque de. Apresentação de Gota d’água. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
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