
Ao estudarmos a obra de Karl Marx, nos deparamos com os conceitos de infraestrutura e superestrutura, fundamentais para se compreender o lugar e o papel das coisas em uma sociedade regida pelo modelo capitalista de produção. A infraestrutura está ligada às forças de produção, o que inclui as matérias primas, os meios de produção e as relações patrão–empregado. É o âmbito no qual se dará a exploração dos trabalhadores e a acumulação de capital. A superestrutura, por outro lado, engloba os meios pelos quais as classes dominantes se valem para a perpetuação da exploração, está ligada ao papel da religião e, sobretudo, aos aparelhos ideológicos e jurídicos consubstanciados no Estado burguês.
Estes dois conceitos, juntos, levam a um terceiro, o de ideologia, sobre o qual Marx assevera que:
“As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe também dos meios de produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes nada mais são que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação” (MARX, 1993, p. 72)1
As ideias que conduzem o pensamento majoritário em uma sociedade não surgem do nada, mas da realidade material transplantada ao mundo das ideias. Logo, em uma sociedade capitalista de antagonismo de classes, as ideias dominantes perpetuam a naturalização de sua base material fundada na exploração do homem pelo homem. Por conseguinte, tanto a infraestrutura quanto a superestrutura carregam em si a manutenção da exploração e a repressão contra os trabalhadores.
Em uma sociedade encontramos diversas instituições sociais, que estão presentes dentro da superestrutura e são responsáveis por organizar seus indivíduos em uma coletividade. As principais são a família, a religião e a escola. Estas, por estarem dentro da superestrutura, são usadas como mecanismo de dominação ideológica das classes oprimidas. Cientes disso, partimos para uma análise focada especialmente na escola, mas, também, nas universidades e institutos federais que, de modo algum, estão isolados da luta de classes. Muito pelo contrário, são instrumentos imprescindíveis para a perpetuação das classes dominantes.
Não podemos fazer, todavia, uma análise mecânica de como se dá essa dominação dentro de tal ambiente. A disputa nas universidades não se dá em uma relação direta entre “opressor vs. oprimidos”, mas pela direção e controle social do conhecimento, em outras palavras, toda a produção intelectual de um povo está subordinada as ideologias dominantes que se manifestam por meio da realidade material em que os indivíduos estão inseridos. Assim, o que vemos dentro de nossas instituições de ensino é a perpetuação de uma lógica liberal e individualista, ligada a uma falsa noção de empreendedorismo que escamoteia a precarização do trabalhador. Volta-se, também, à formação de mão de obra pouco qualificada, de viés mecanicista acrítico, e à produção de ciência e tecnologia direcionada aos interesses e lucros de grandes empresas subordinadas ao grande capital.
Esse processo torna-se evidente quando analisamos o pós-golpe de 2016. No que diz respeito à educação, o governo Temer é marcado pela Emenda Constitucional 95, que congela os investimentos no setor por vinte anos, e pela reforma do Ensino Médio, que promove uma reestruturação das universidades principalmente nos cursos de licenciatura, precarizando crescentemente a profissão de professor. Por sua vez, o governo fascista de Jair Bolsonaro promove um ataque ideológico indiscriminado às universidades públicas desde o período de sua campanha em 2018. Após eleito, iniciou-se um intenso desmonte. Estamos presenciando um constante corte de verbas, que se soma à investida contra a autonomia universitária por meio da nomeação de reitores interventores e à tentativa de avançar a privatização com o projeto “Future-se” (leia-se “Fatura-se”).
Sendo assim, cabe a nós nos perguntarmos: a solução seria a volta a como eram as coisas antes de 2016? E a resposta é NÃO. O que presenciávamos antes, nos governos progressistas do PT, era uma universidade ainda ligada aos interesses do capital, com a privatização de laboratórios, abertura para parcerias público-privadas em que não havia retorno para o ente público, como no caso do programa REUNI em que se incentivava a interiorização das universidades sem dar as condições de um estudante se manter dentro dela. Some-se a isso a implementação de empresas júnior que cooptavam os alunos em uma lógica de empreendedorismo falacioso, iludindo o estudante na esperança de ser seu próprio patrão quando, em realidade, frequentemente, acabava por colocá-lo em posições cada vez mais subalternas, sem direitos básicos. Para além disso, a lógica do novo empreendedorismo tem como efeito perverso a descaracterização do trabalhador enquanto tal, dificultando-lhe sua organização enquanto classe trabalhadora consciente de si e atuante para si.
Este período também foi marcado pelo avanço de programas de financiamentos, como FIES e ProUni. Isso gerou o aumento exponencial das faculdades privadas no Brasil, de acordo com o Censo do Ensino Superior2 mais recente que temos, o de 2018, mais de 88% das instituições de ensino superiores são privadas, totalizando mais de 75% das matrículas no país (6.373.274 alunos dos 8.450.755). Estes programas, para além de causar o endividamento em massa dos jovens brasileiros – visto que dos 3 milhões de alunos que passaram pelo FIES, 2.8 milhões ainda estão em débito com a união3 –, reforça um modelo educacional baseado na produção em massa de diplomas estreitamente ligada ao interesse do grande capital por formação de mão de obra de baixa qualificação em larga escala, e, como agravante, desvinculada do conjunto mais amplo do mundo do trabalho, evitando que o trabalhador compreenda seu lugar social neste e suas contradições.
Outro grande problema que surge do aumento de instituições particulares é o avanço do Ensino à Distância. Em dez anos, de 2008 a 2018, o modelo não presencial saltou de 463.093 matrículas para 1.373.321, o que representa 40% das matrículas do último ano. Os problemas de tal ideal de educação são muitos: ele transfere a responsabilidade da aprendizagem para o aluno, ele atinge em especial mulheres que fazem licenciatura, o tempo médio de curso passa de 4 para 9 anos e o estudante não possui uma política de assistência estudantil4. Além disso, o fato é que de quem atua nessa área são os grandes monopólios da educação como os grupos Kroton/Cogna e Abril, ligados a instituições internacionais de viés imperialista, como Banco Mundial e UNESCO, o que implica em um aumento de lucros estrondosos para os grupos privados. Dessa forma, além dos problemas do ensino privado, tem-se ainda aqueles referentes ao EaD, cumulando para a geração de lucros em cima da precarização das relações de ensino e trabalho de aluno e professores.
Qual é a educação que defendemos? Para nós é preciso, mais do que nunca, apresentarmos um programa radicalmente contrário a esse que nos é dado. Acreditamos em uma educação anticapitalista em que a produção de ensino, ciência e tecnologia e extensão estejam inteiramente ligados aos interesses e sob a gestão da classe trabalhadora e seus conselhos. Para nós é necessário mais do que nunca a defesa de uma Universidade Popular.
Para isso é preciso que as Universidades e Institutos tenham em seus pilares os princípios de Omnilaterial e Politécnica, apresentados nas obras dos sociólogos soviéticos Moisey Pistrak e Viktor Shulgin. A primeira, diz respeito ao movimento de formação do indivíduo em todas as áreas, ou seja, que não pense os conteúdos e matérias como caixinhas que podem ser separadas umas das outras, o que leva a uma extrema especialização e perca da compreensão de um todo. Já a segunda trata de uma educação que abarque, conjuntamente, o conhecimento teórico como o prático, e coloque o aluno em contato com o mercado de trabalho não de forma mercadológica como é feito hoje em dia, mas que mostre as contradições do espaço e o local do estudante dentro dele. Por uma formação que trabalhe tanto a questão técnica como a questão intelectual, formando futuros dirigentes que serão, ao mesmo tempo, trabalhadores.
Para além da mudança nas ideias de o que é e para o que serve a educação é preciso que repensemos também questões mais materiais. Em primeiro lugar, a defesa de uma educação 100% gratuita, laica e de qualidade. Sabemos os impactos que a educação sofreu com o avanço do setor privado e das políticas ultraliberais de Temer/Bolsonaro nos últimos anos no Brasil. É preciso mais do que nunca a defesa que 100% do dinheiro do pré-sal e as verbas referente à educação sejam destinados a educação pública. A pauta da não privatização da educação pública é mais do que urgente, contudo, essa defesa não pode ficar presa apenas na não privatização da gestão, mas que seja contrário a todos os tipos de privatização, seja ela velada ou não, como parcerias público-privadas e empresas júniores. É preciso também que se desfaçam as privatizações dos Hospitais Universitários e que esses estejam ligados ao SUS, ampliando o atendimento da rede. Outro ponto a se destacar é a defesa da não terceirização dentro das instituições, bem como a contratação efetiva dos já terceirizados.
A Universidade é um espaço político, sendo assim, urge a necessidade da livre organização tanto de estudantes quanto de profissionais, sejam em seus CA’s, DA’s, DCE ou Sindicatos, e que estes possam ter um diálogo constante entre si e com os demais movimentos sociais. É preciso garantir a paridade nas representações e nos conselhos internos. Sabemos que a presença de um Movimento Estudantil organizado e com pautas claras que busquem o rompimento das condições materiais causa espanto e uma contra reação. Hoje vemos o aumento da política de segurança nos campi universitários, com a presença da PM, câmeras e catracas, por exemplo. Em uma universidade que não pretende fechar-se em sua bolha é preciso que esse tipo de controle e coerção sejam abolidos, abrindo-a cada vez mais para a comunidade externa. Assim, é necessário também a criação de espaços culturais que sejam abertos e organizados de forma autônoma pelos estudantes, e uma política de extensão popular.
É necessário repensarmos ainda as políticas de assistência estudantil. Hoje, além de insuficiente, essa se dá de forma extremamente meritocrática e burocrática. É preciso defender a expansão de auxílios visando a universalização e aumento dos valores. Além do aumento de vagas em creches universitárias, com políticas de apoio psicológico, garantir a gratuidade dos RU, ampliação de moradias e de bolsas de pesquisas na graduação e durante a pós-graduação.
Outro ponto fundamental para uma Universidade Popular é o direito a entrada na universidade. Somos contra toda e qualquer política de vestibular. A universidade pública tem que ser aberta a todos. Mas enquanto isso não é posto em prática se faz necessário a defesa do fim da taxa de inscrição em vestibulares, a manutenção da política de cotas e um planejamento de uma expansão qualificada e efetiva dos cursos e vagas. É preciso que a universidade garanta direitos às pessoas marginalizadas como, por exemplo, os negros e LGBTs, garantindo a entrada, permanência e êxito destes durante o processo de formação e o combate as diversas violências que sofrem. Além disso, a presença deles no ambiente universitário estimula o pensamento de um ensino, pesquisa e extensão voltados a solucionar os problemas referentes a marginalização de tais grupos.
O projeto de uma Universidade popular só pode ser viabilizado a partir de um programa de superação do sistema que utiliza da educação para garantir a exploração da classe trabalhadora e da natureza. A universidade popular pauta, acima de tudo, a radicalização da defesa do direito básico à educação, contudo, não se trata de um estudo de cunho burguês, mas classista, que faça o enfrentamento a todo tipo de exploração, opressão e dominação. As contradições da atual crise do capital e o avanço do fascismo mundial, apenas nos demonstram que é necessário transformar radicalmente a sociedade que vivemos. Cabe a nós constituir espaços de organização e deliberação autônoma de classe, construir o programa político revolucionário em nossas bases de atuação, criando o germe de uma nova sociabilidade, que será constituída, obrigatoriamente, pela via da Educação Popular e da Universidade Popular, rumo ao Socialismo!
Para conhecer mais o projeto de uma Universidade Popular: http://ujc.org.br/dossie-universidade-popular/
1 MARX, Karl. A ideologia alemã. 9ª ed. São Paulo: Hucitec, 1993
2 BRASIL. Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo da Educação Superior 2018: Notas Estatísticas, 2019. Disponível em : <http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2019/censo_da_educacao_superior_2018-notas_estatisticas.pdf>
3 Fies completa 20 anos com 47% dos atuais estudantes inadimplentes. PODER 360. 2019. Disponível em: <https://www.poder360.com.br/brasil/fies-completa-20-anos-com-47-dos-atuais-estudantes-inadimplentes/>.
4 Ibid. Ref. 2