
A educação formal ou informal é um processo de ensino-aprendizagem permeado por uma dimensão pedagógica que, ao se encontrar intrinsecamente articulada a uma dimensão política, não se apresenta como um objeto neutro. Sendo assim, o discurso de neutralidade sustentada pela burguesia é um mecanismo discursivo, que visa ocultar os aspectos sociopolíticos que delimitam os diversos modelos teórico-metodológicos do sistema educacional iniciados com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial.
Essas perspectivas pedagógicas, concebidas pela classe dirigente e dominante, são denominadas por Libâneo (2005) de Pedagogia Liberal. A expressão ‘liberal’ faz referência ao liberalismo, uma doutrina política e econômica que estrutura e justifica as forças e as relações de produção capitalista, o que explicita a real finalidade da escola burguesa: a manutenção da propriedade privada dos meios de produção, e como desdobramento, de uma sociedade organizada em classes.
Esse grande bloco da Pedagogia Liberal é composto por quatro correntes teórico-metodológicas sistematizadas em tradicional, renovada progressivista, renovada não diretiva e tecnicista. Essas abordagens do ensino-aprendizagem se destoam pela ação passiva ou ativa da educação sobre a sociedade; o papel da escola na formação do indivíduo; nos conteúdos; na didática e nos pressupostos teóricos da aprendizagem. Entretanto, todas essas nuances visam adequar o educando a sociabilidade do capital, alterando apenas a forma como esse processo ocorre.
Tais vertentes da pedagogia liberal são marcadas por aspectos sociopolíticos que garantem a manutenção da ordem vigente. E se o objetivo do ensino burguês é assegurar a reprodução e expansão do capital, a sua concepção político-pedagógica está suscetível a modificações em sua apresentação. Essas mudanças estão condicionadas a reestruturação do regime de acumulação, e da recomposição da hegemonia burguesa. Essas duas dimensões funcionais do capitalismo surgem como respostas às crises conjunturais do capital, que modificam a sua face, mas não a sua lógica interna de funcionamento.
Condicionando o ensino a dinâmica burguesa de dominação e a organização do processo produtivo em trabalho intelectual e manual, o modelo educacional se torna dual. A configuração dessa dualidade alterou-se ao longo do tempo, entretanto a sua dinâmica não se desfigurou, pois a formação para quadros dirigentes e postos estratégicos na cadeia de produção continua predominantemente direcionada a burguesia e a classe média alta. E restringindo a grande maioria da classe trabalhadora a uma formação geral mínima, e/ou associada a uma qualificação específica para exercer funções simples e repetitivas na produção. Em suma, as atividades intelectuais encontram-se primordialmente reservadas a classe dominante e dirigente e aos seus aliados imediatos, e as atividades manuais a classe dominada.
A manutenção da ordem e do sistema socioeconômico hegemônico perpassa todas as esferas sociais, incluindo a educação, o que torna fundamental apreender as concepções dominantes de educação e sob qual paradigma está sendo conduzida no processo de ensino-aprendizagem.
A depender das concepções de educação e ensino que são utilizadas pelos professores e educadores, pode-se definir as leituras que um indivíduo faz da realidade que o cerca, tendo em vista que elas norteiam o processo de aquisição de conhecimentos pelo qual ele passa. É necessário compreender, então, que a educação pode ou não levar indivíduos a uma corrida pela aquisição e domínio de conhecimentos que confirmam a orientação das políticas públicas a serviço da manutenção do sistema socioeconômico vigente, cujos valores sociais, morais e econômicos não correspondem às necessidades da maioria da população em idade escolar, que é de origem pobre e trabalhadora.
Os reflexos da política educacional instaurada pelas classes dominantes e partidos/políticos burgueses, por meio da Lei nº 9.394/1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e Lei nº 13.005/2014 – Plano Nacional de Educação – PNE, na vida dos indivíduos são notórios à medida que fica evidente uma lógica mercantil, na qual a formação escolar pública, isto é, aquela destinada para a classe trabalhadora e camadas populares, se dá exclusivamente para atender a um mercado de trabalho exploratório, meritocrático, competitivo e cruel. Uma evidência dessa realidade são as dificuldades impostas aos estudantes de baixa renda para ingressar em universidades públicas, bem como a carência de condições adequadas de permanência para os poucos que conseguem ingressar. Isto advém de uma política que elitiza os espaços acadêmicos numa tentativa de isolamento de setores precarizados da sociedade (MUP, 2009).
Nesse contexto, o papel do educador comprometido com a transformação social é o de compreender as problemáticas dessa sociedade, escancarar as contradições desse sistema exploratório e servir de ponte para a tomada de consciência dos indivíduos, alavancando o processo árduo de luta pela emancipação humana. Esse papel é fundamental para a atuação daqueles a que chamamos educadores populares. As problemáticas acerca da educação mercadológica imposta pelas classes dominantes e partidos/políticos burgueses decorrem do fato de que o processo de aquisição dos conhecimentos escolarizados, desde sempre, integra a concepção de mundo da classe dominante e torna dependente a descendência da classe trabalhadora em, pelo menos, dois sentidos: o primário, decorrente da ausência de formação crítica, que mantém os valores daquela descendência submetidos aos valores da elite; e o secundário que, mesmo diante de uma formação crítica, impõe-se por sugerir que a aquisição e o domínio dos conhecimentos elitizados podem promover ascensão social.
A proposta de educação popular parte da compreensão de que os estudantes são sujeitos que carregam consigo conhecimentos materiais e concepções de mundo que devem ser considerado no processo de ensino-aprendizagem. Considera como tarefa a libertação dos indivíduos pela aquisição de conhecimento, porém, não para aplicá-los mediante uma ordem de poder socioeconômica elitista, que torne quem aprende serviçal dessa ordem, mas para tomar consciência do mundo e de si (TEIXEIRA, 2007). Por isso, a educação popular se evidencia como ferramenta para enfrentar o princípio de que não há conteúdos diversos que sejam primordiais à formação.
A educação popular vai na contramão da educação tradicional e seu ensino instrumental, dualista e autoritário. Para Marx, é absolutamente impensável uma “educação libertadora sob incumbência do Estado”. Assim, a educação desenvolvida para a classe trabalhadora deve estar livre do controle do Estado burguês e da igreja, reproduzida sob autonomia institucional e laica. E é sob essa ótica que devem atuar os educadores populares, por meio de escolas que denunciam a exploração econômica patronal, domínio e repressão do estado burguês e opressão ideológica de instituições religiosas. Para os educadores populares, é necessário aliar teoria e prática para renovar a educação e consequentemente transformar a sociedade, articulando à educação o conceito de classe trabalhadora, caracterizando então uma grande revolução. Faz-se urgente prover uma educação crítica, destinada a todos os indivíduos da sociedade, mas, sobretudo, aos filhos e filhas da classe trabalhadora.
Por isso é fundamental que os educadores populares, por meio de seus locais de atuação, considerem sua perspectiva de educação, seja no ensino básico ou superior, alinhados à realidade material da população a qual servem, sendo essa a sua concepção de mundo. Não é coerente que um educador, disposto a construir uma educação verdadeiramente popular, se desvincule da construção de um projeto de sociedade igualmente emancipador.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei no 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 25 jun. 2014. Acesso em: 09 de novembro de 2020.
BRASIL. Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 20 dez. 1996. Acesso em: 09 de novembro de 2020.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos de Karl Marx e Friedrich Engels. Trad. José Paulo Netto e Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
MARX, Karl. Crítica do Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo, 2012.
MUP. Movimento por uma Universidade Popular. Orientação à criação e funcionamentos de grupos estudantis de extensão universitária. s.l.: MUP, 2009. Acesso em: 09 de novembro de 2020.
PALUDO, Conceição. Educação popular como resistência e emancipação humana. In: Cad. Cedes, Campinas, v. 35, n. 96, p. 219-238, maio-ago., 2015. Campinas, SP 2015.