Heleieth Saffioti: contribuições para um feminismo classista

Escrito por Maitê Peixoto*

Entre as grandes contribuições de Heleieth Saffioti para o feminismo classista está a compreensão de que a condição das mulheres no capitalismo é resultado de relações de dominação e de exploração que compõem uma unidade política, expressa na ordem patriarcal e de gênero.

Saffioti defendeu a tese de que o patriarcado sempre serviu para a manutenção de uma ordem social específica. Ele surge sob a forma de um pacto entre homens que estabelece hierarquias entre gêneros, mas que independe da figura física do patriarca para se realizar, por isso pode ser acionado também por mulheres, já que funciona de maneira automatizada nas sociedades através da ideologia dominante. Por ser um fenômeno que opera na superestrutura, pelo falseamento da realidade, o dominado não percebe sua condição.

A socióloga brasileira estabeleceu uma ruptura importante com feministas da década de 1970, que concentravam suas reflexões fundamentalmente sobre a dominação masculina, analisando as relações entre homens e mulheres que daí resultavam; essas análises partiam da ideia weberiana de uma sociedade tripartite (política, econômica e social). Ocorre que, operando desta maneira, a perspectiva política era separada da econômica. A dominação masculina se realizaria dentro de uma dimensão política, e daí resultariam relações de resistência ou atimia por parte das mulheres. Enquanto a exploração, essa se realizaria unicamente na dimensão econômica. Era uma interpretação funcionalista que não se propunha analisar a totalidade a partir de suas relações.

Saffioti percebia que a libertação das mulheres só seria possível através de uma unidade revolucionária capaz de romper com as estruturas que sustentam essa ordem. Neste caso, o potencial revolucionário estaria com as mulheres, aquelas que sofrem prejuízos maiores, no entanto essa unidade revolucionária seria ineficaz sem os homens.

Recorrendo aos “Manuscritos econômico-filosóficos” de 1944, obra em que Marx desenvolveu a ideia de coisificação da mulher, Saffioti nos mostrou como esse processo atuava não apenas no prejuízo físico, material e psicológico das mulheres, mas na alienação humana de um modo geral, já que transformar um ser humano em objeto, pressupõe também a perda da própria humanidade. Tratava-se de uma negação ontológica atribuída à mulher e desenvolvida no homem dentro da ordem patriarcal e de gênero.

No capitalismo as relações sociais se tornam relações sociais brutalizadas, por isso um movimento que se preste a romper com esse sistema precisa levar em conta o ser social (homens e mulheres) já que todos sofrem prejuízos em menor ou maior grau por conta dessa “animalização”. Era estéril a proposta de um movimento exclusivista de mulheres pela sua emancipação. A dominação e exploração de gênero só poderia ser derrubada por um movimento revolucionário que associasse os esforços de todos aqueles que sofrem prejuízos, caso contrário, sempre restariam mecanismos de reprodução dessa lógica de dominação e de exploração e sujeitos prontos para operá-la.

Saffioti reconheceu que tanto marxistas quanto feministas radicais entendiam que a dominação patriarcal se realiza independentemente do Estado. Mas criticava a persistência de um pensamento binário nas feministas radicais que consideravam a universalidade do patriarcado através ausência de sociedades matriarcais: se existe patriarcado então deveriam ter existido sociedades matriarcais.

O erro, para Saffioti, está no questionamento. A pergunta não deveria ser se existe ou não matriarcado a partir da existência do patriarcado, o que nos interessa saber é se existiu ou podem existir sociedades com igualdade social entre homens e mulheres. Ela percebeu o patriarcado como uma construção ideológica no terreno da superestrutura, por isso mulheres também podiam operá-lo, exercendo funções de patriarca com crianças por exemplo. Por trabalhar dentro de uma perspectiva marxista, se preocupou em demarcar a instância de atuação desse regime de dominação-exploração. Vale lembrar que essa ideologia (embora se localize na superestrutura) se materializa no ser social.

Ela criticava o caminho trilhado pelos estudos de gênero pautados por uma perspectiva supostamente inovadora que dizia que o gênero é relacional, já que em sociedade tudo é relacional; o caráter relacional está intrínseco na própria materialidade da vida.

Tomando dominação-exploração como fenômeno único, quando falamos em dimensão econômica não se trata apenas da exploração acentuada e da disparidade salarial que prejudica as mulheres por atribuir a elas uma condição de subalternidade e dependência, mas também do trabalho reprodutivo, do controle de sua sexualidade, do controle dos seus corpos. Disso é revelado um cruzamento entre o público e o doméstico, mais um elemento que comprovaria a unidade do fenômeno.

Em sua tese “A mulher na sociedade de classes: mito e realidade”, Saffioti reafirmou essa unidade entre dominação e exploração na configuração da ordem patriarcal de gênero, um conceito político que opera em homens e mulheres, através do uso da violência. Ela compreendeu o ser humano como totalidade bio-psico-social, acentuando o caráter negativo da ordem patriarcal de gênero sobre toda a sociedade, ainda que o prejuízo maior fosse das mulheres. Para ela, classe e gênero são construídos simultaneamente na História. Por ser a ordem patriarcal de gênero um conceito político e que se realiza através do uso da violência, o objetivo também se colocaria na ordem política, isto é, na ruptura necessária com essa estrutura e não se daria de forma pacífica.

Heleieth Saffioti nos deixa a certeza da necessidade de construção de um movimento revolucionário que entenda o ser social não essencializado e que saiba responder politicamente aos objetivos de superação da ordem patriarcal e de gênero fortalecida dentro do modo de produção capitalista, no qual o protagonismo é das mulheres, mas cuja vitória só poderá ser alcançada através da associação de esforços conscientes da classe trabalhadora como um todo, sobre a qual recaem todos os dias os prejuízos físicos, psíquicos, econômicos e sociais dessa unidade de dominação e opressão.

*Maitê Peixoto é Mestra em História Política e Doutora em História Social pela PUCRS e autora do livro: A cultura do trabalho, o sensível e a partilha: a construção da identidade operária brasileira através do desenho político de imprensa (1910-1935) publicado pelo Editora Appris em 2019.

Referências:

MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.

SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

__________. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Perseu Abramo, 2015

__________. Ontogênese e filogênese do gênero: Ordem patriarcal de gênero e violência masculina contra as mulheres. In: Flacso Brasil, série estudos e ensaios, ciência sociais, jun. 2009.

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