O Brasil não precisa de uma burguesia letrada

Escrito por Maria Tereza Serbeto*

O Brasil não precisa de uma burguesia letrada, o Brasil não precisa de burguesia.

Antes de tudo gostaria de contextualizar a escrita deste texto, tendo em vista a data em que meu leitor poderá estar experienciando esta leitura: atualmente, em decorrência de um documento publicado pela Receita Federal sanando dúvidas sobre a Reforma Tributária, no qual o órgão declarou que a taxação de livros poderia sim vir a ocorrer, e justifica essa tributação com o argumento de que ‘’pobres não leem tanto quanto os ricos’’, o debate sobre o público consumidor de livros, a tributação literária, e o acesso à leitura retornou as bocas, telas e dedos.

Com a efervescência desses assuntos, retornaram também aos tópicos mais comentados imbecilidades já antes lidas e ouvidas, e é sobre uma das mais asquerosas delas que eu gostaria de me debruçar sobre neste texto: os sórdidos e sádicos desejos por uma burguesia ideal.

A incoerência, ora docemente ilusória, ora tragicamente fatídica, dos sociais-liberais brasileiros (inclua aqui parlamentares, celebridades, escritores, professores, cientistas ou qualquer outro nome que tenha a voz ouvida e reverberada) sobre a tributação de livros clama e ironiza por ricos leitores, aponta a contradição da taxação sustentada sob os frágeis argumentos do ‘’pobre lê pouco’’ dados pela Receita, e com ela se diverte e lamenta nossa boçal e estúpida classe dominante, complementa os choramingos ainda com um ‘’quem me dera que os ricos lessem!’’. Fora das esferas mais humoradas e satíricas, os argumentos mais sólidos discorrem preocupada e criticamente: ‘’Infelizmente nossos ricos não são ávidos leitores, muitos sequer se interessam por qualquer expressão artística! Abominam os debates acadêmicos e muitas vezes se deixam abraçar pelos anti cientificismos!’’, e tragicamente são complementados com ‘’Por isso nosso país não vai para frente! Não temos uma burguesia esclarecida! Nossos ricos não buscam conhecimento e são burros!’’, demonstrando pavoroso desconhecimento (ou inocência?) sobre quem é a burguesia brasileira, desembocando em equivocadas interpretações.

Primeiramente gostaria de discorrer sobre as observações rasas, depois atingirei o ponto onde pretendo chegar.

A burguesia brasileira de forma alguma não é letrada ou é burra. Talvez essa noção existe hoje em dia porque esta classe social tem sido galgada, ainda que mui raramente, por extratos sociais mais desfavorecidos por conta da diminuição da estratificação social que o Brasil vem experienciando desde o último século, todavia a burguesia ainda é majoritariamente infestada por famílias e pessoas tradicionalmente ricas e prestigiadas – historicamente ricas e prestigiadas -, pelas oligarquias que estão há séculos com as rédeas do poder nas mãos, que há gerações exercem influência sobre as regiões onde habitam, é equivocadíssimo pressupor que estes grupetos e famílias que vivem sob os moldes de vida mais aristocráticos possíveis, comendo de iguarias importadas, consumindo o mais requintado das artes e da moda, inserindo seus filhos nas melhores escolas do país e nos cursos mais bem-vistos (e obviamente elitizados) de nossas universidades, não detenham os conhecimentos mais diversos. Nossa burguesia é tão burra e carece tanto de ser urgentemente letrada, que a mesma orquestrou os mais marcantes momentos da política brasileira, e é tão competente nessa tarefa que até nos momentos de maior inserção de camadas populares nos parlamentos e nos ditames do projeto nacional, esta manteve seus tentáculos plenamente vivos e conectados aos palacetes do poder. Não subestime a burguesia e seu conhecimento pautando-se em bobalhões como Luciano Hang (nosso querido ‘’Véio da Havan’’), não se esqueça que como Caiado temos vários.

Em segundo lugar, há de ser pontuado: não entender bem nossa classe dominante ocasiona em imperdoáveis erros de interpretação e de conclusão. Não, não devemos culpar a suposta imbecilidade, falta de letramento, o não-consumo de literatura da nossa burguesia como o ente malvado por trás do nosso subdesenvolvimento e papel subserviente diante do imperialismo estadunidense. É equivocado supor que uma burguesia esclarecida, elegante e bem instruída seja a chave para o avanço de um país, o despertar duma economia, a redenção de um povo. Como já dito antes não deve-se pautar em meia dúzia de ricos meia-boca para classificarmos nossa classe dominante – pois esta tem sido extremamente bem-sucedida na execução de seus objetivos –, e depois não está entre os projetos de nossos ricos que o país avance ou se despeça algum dia de todos os papéis que exerce hoje, se somos dominados pelo imperialismo e testemunhamos uma latente desigualdade social, não é porque não temos a luz de brilhantes ricos, mas sim porque estes, independente de suas qualificações de conhecimento, são coniventes e até ativos atores nos processos que nos colocam onde estamos, esse aligeiramento cotidiano que a classe trabalhadora vive, experienciando cada vez mais desgraças diariamente, e como exemplo disso temos numerosos casos como as atuais contrarreformas neoliberais, a tentativa de aquisição de vacinas pelo setor privado e a acumulação desenfreada de capital sob as mãozinhas de alguns.

Um outros aspecto que também preocupa no desejo pela burguesia ideal pregada e desejada pelos tipos anteriormente citados é como parece que uma classe dominante detentora de conhecimento, voraz leitora, com dotes acadêmicos, se torna legítima de poder explorar, que através de seu alvo e casto local de saber, ganha possibilidades incontestáveis de exercer seus privilégios, de perpetuar seu projeto de poder, de ocasionar com sua existência uma bizarra desigualdade. Ser letrada não qualifica e legitima a burguesia para explorar, é bizarro entregar o projeto de desenvolvimento a uma classe que quer a quantidade mais indecente da nossa força de trabalho, apenas porque essa tem ditos saberes e leituras.

Quão ultrapassada é essa ideia de que o desenvolvimento virá pelas mãos de destacados esclarecidos, que nosso problema se encontra na ”má gestão” e não no tipo de gestão, ou no que está sendo gerido? Ditando em miúdos: por que o que questiona-se é o caráter da burguesia e não a existência da mesma? Por que não questiona-se a estrutura social que a permite existir? Nossos ricos queridos, esses entes que erroneamente alguns avaliam como os sujeitos detentores da possibilidade de mudança não se interessam pelo progresso e pelo desenvolvimento, a não ser o deles próprios, de suas benesses, de suas contas bancárias, esses tendo lido Hegel, Lispector, Mises ou Tolstoi, ou não lendo nenhum deles não se encantam e não objetivam para si um país muito diferente do que há hoje, e se o fazem, com certeza é ainda pior do que o que temos. Ilusões com a classe dominante geram frustrações e quando não mortes, talvez se os setores mais liberais (como o social-liberalismo supracitado e que muito reproduz discurso aqui criticado) que tanto nos condenam como ‘’radicais’’ percebessem isso, provavelmente não apostariam em tamanhas incoerências. São expectativas erradas nos sujeitos errados. Imobilismo, inocência, falta de discernimento, romantismo. Quem está por nós somos nós. O Brasil não precisa de uma burguesia letrada, o Brasil não precisa de burguesia.

Maria Tereza Serbeto é militante da União da Juventude Comunista (UJC), do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e compõe as fileiras do Movimento por uma Escola Popular (MEP).

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