Síria: a tragédia além do terremoto!

Escrito por Laércio Júlio da Silva (Jobi)¹


A Síria enfrenta uma sangrenta guerra civil que se arrasta desde 2011. As razões dessa guerra ‘interminável’ estão ligadas aos esforços dos imperialismos norte-americano e europeu contra a República Árabe da Síria, com vista a desagregar o Estado Sírio, que exerce uma liderança no mundo árabe como Estado laico, resistindo a esses imperialismos e fazendo frente histórica à política de genocídio promovida pelo Estado de Israel contra o povo palestino.

Para tanto, atuam e se impõem a fim de estrangular as condições de vida do povo sírio e fragmentar o seu território. Entre as ações nesse intuito estão a promoção de uma agressão militar que envolveu diretamente Estados Unidos, Otan e Israel; o financiamento, o treinamento e o armamento do Estado Islâmico, que também envolveu diretamente o Estado de Israel e a Arábia Saudita; a desagregação econômica e social agravada por sanções econômicas sem qualquer amparo legal da ONU; a manutenção de áreas do país sob controle do Estado Islâmico e de milícias curdas instrumentalizadas pelos Estados Unidos. Em que pese esse contexto, o governo de Bashar Al-Assad se mantém com um apoio da população superior a 90%, ao qual se soma o apoio militar russo, iraniano e de milícias hezbollah.

No atual momento, marcado pelas mazelas do terrível tremor de terra que atingiu a Turquia e a Síria, o quadro social sírio talvez tenha alcançado um grau inédito de desespero e de tragédia, com impactos econômicos igualmente avassaladores. Todavia, as potências imperialistas reiteram as medidas coercitivas impostas ao povo sírio, enquanto os oligopólios de mídia a seu serviço ignoram a tragédia e criticam os esforços dramáticos assumidos pelo governo de Bashar Al-Assad.

Realizar uma recuperação histórica é preciso!

O Império Selêucida (323-150 A.C.) já moldava a formação do povo sírio, cuja ancestralidade extremamente rica contribuiu de maneira substancial para o mundo em que vivemos. Devemos aos sírios a arquitetura, a metalurgia, a sua cultura escrita e uma vasta tradição culinária.

Saltando para o mundo contemporâneo, quem estuda a história da Síria compreende as raízes da postura dos países imperialistas para com aquele país. Fatores como o território estratégico entre os continentes europeu e asiático, com importante reserva de petróleo, e, mais recentemente, a idealização de projetos milionários de passagem de oleodutos e de gasodutos interligando o Golfo Pérsico e o Mar Mediterrâneo são determinantes para as agressões internacionais sofridas longo de todo o século XX e, em especial, no século XXI.

A França passou a ocupar o país a partir de 1920, lá ficando até 1946, quando finalmente a Síria conquistou sua independência. Na sequência, em 1948, quando do levante palestino contra a criação do Estado de Israel e a sua progressiva segregação no seu próprio território, colocou-se ao lado da guerra contra o sionismo israelita.

Em 1963, com a tomada de poder pelo Partido Baath, de orientação laica, nacionalista e socialista, teve curso uma série de profundas reformas sociais e econômicas, com destaque para a nacionalização de recursos naturais e a edificação de um Estado árabe laico. Em busca de uma política internacional independente e de um protagonismo no mundo árabe, a Síria manteve aproximação diplomática com a antiga URSS, em especial no tocante ao apoio a movimentos de libertação nacional da África e ao estabelecimento do Estado Palestino. Hafez al-Assad, pai de Bashar al-Assad, na condição de presidente, juntamente com Fidel Castro, em Cuba, e Marechal Tito, na Iugoslávia, fundaram o Movimento dos Países Não Alinhados.

Em 1967, na chamada primeira guerra árabe-israelense, teve parte do território, conhecido como as Colinas de Golã, ocupado por Israel. Apesar de a ONU reconhecer como da Síria esse território, a ocupação ilegal se estende até os dias de hoje.

Em 1973, aliou-se ao Egito, iniciando uma invasão com o objetivo de recuperar os territórios invadidos por Israel, conhecida como Guerra Árabe-Israelense. Golã e parte do Sinai egípcio foram recuperados em uma ofensiva heroica, mas uma forte ofensiva apoiada pelo eixo imperialista – Israel, EUA e países aliados – voltou-se contra as forças de libertação. O conflito durou vinte dias, sendo negociado o cessar-fogo pela ONU. Descumprindo os acordos, Israel recuperou à força os territórios antes ocupados e chegou a invadir o território sírio, avançando até chegar a 40km da capital Damasco, o que forçou os árabes a retrocederem. Com isso, a configuração inicial antes da guerra foi restituída, prevalecendo até hoje a ocupação sionista.

Em 1975, a Síria se envolveu na chamada Guerra Civil Libanesa (1975-1990) em ajuda à OLP (Organização de Libertação da Palestina) e aos refugiados ao sul do Líbano, fugindo da ocupação israelense. O conflito passou a ser multifacetário com o envolvimento de vários países árabes, em combate às forças israelenses que avançavam sobre o sul do Líbano. A Síria saiu oficialmente do conflito, mas o sul do Líbano ainda hoje é alvo de ataques dessas forças israelenses.

A condição de Estado árabe laico concorreu decisivamente para que a Síria se convertesse em um país de convivência religiosa cristã e islâmica de inúmeros matizes. Outro aspecto a ser destacado no contexto dessas reformas diz respeito à condição das mulheres, visto que, apesar de preceitos religiosos e ancestrais, as sírias passaram a assumir grande participação em postos de destaque na vida social e no aparato de Estado. Essas mudanças permitiram, por exemplo, que o posto da Embaixada da República Árabe da Síria no Brasil esteja ocupado por Rania Alhaj Ali, que o Parlamento Sírio esteja liderado por Hadiya Khalaf Abbas e que a vice-presidência da República esteja sendo exercida por Najah al-Attar.

A Síria desde a guerra civil iniciada em 2011

Desde 2011, no contexto da chamada “Primavera Árabe” – levantes relativamente espontâneos frutos de descontentamentos populares, no âmbito dos quais foram organizados movimentos armados por parte da CIA, instrumentalizados como guerra híbrida contra o regime político da Síria –, os imperialismos norte-americano e europeu encontraram espaço e força no propósito de desagregação do país. Teve curso uma campanha midiática internacional caluniosa de acusações de agressão aos direitos humanos por parte do regime político sírio, uma mobilização religiosa e de recursos financeiros pela elite política e econômica saudita que culminaria na mobilização, no treinamento e no armamento de fundamentalistas islâmicos e de mercenários articulados pela CIA, um bombardeio aéreo dos Estados Unidos, da Otan e de Israel sobre forças e instalações militares sírias, um confisco de ativos do Estado e um bloqueio econômico do país, conduzindo uma violentíssima guerra híbrida contra a Síria.

Os princípios de respeito à soberania e à autodeterminação dos povos não compõem o receituário imperialista, disso sabemos. Todavia, mesmo em contexto de tragédia social inimaginável, como agora, quando mais de 6 mil mortes já foram confirmadas, entre muitas outras que subirão esse número, chegam denúncias de órgãos de imprensa alternativos de iniciativas de rearmamento das forças fundamentalistas e mercenárias do “Estado Islâmico” por parte dos Estados Unidos e de países europeus, para retomar o processo de desagregação da Síria, momento em que o apoio militar terrestre e aéreo russo está comprometido em face da Guerra entre Ucrânia-Otan e Rússia. Realidades que evidenciam o desprezo do imperialismo pelos povos que não integram o chamado “Ocidente Coletivo” – aqueles que não compõem os povos caucasianos de língua anglo-saxônicas, germânicas e francófonas – nem se subordinam a ele. É mais uma evidência a confirmar o fato de que imperialismo não está separado de racismo, na medida em que este é um instrumento ideológico a serviço daquele.

É fundamental uma mobilização internacional humanitária por um cessar fogo imediato, pela suspensão das sanções econômicas criminosas contra a Síria impostas pelos EUA e a EU e pela interrupção da retomada de financiamento e de armamento de movimentos fundamentalistas e de mercenários no país.

A sociedade brasileira, cuja formação contou com considerável contribuição étnica e cultural sírio-libanesa, tem que fazer a sua parte nessa mobilização humanitária, que também precisa ser concebida como parte de uma luta política internacional pela preservação da soberania e da integridade territorial da Síria, bem como pela superação das forças que procuram impor um enorme retrocesso político, social e cultural àquele país.

Toda a solidariedade à Síria e a seu povo!


¹ Militante do PCB e integrante do Grupo de Apoio e Solidariedade Popular Brasil-Síria (Gaspbrsiria).

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