
Na última quarta-feira do mês de fevereiro deste ano, dia 22, em decisão unânime, o Tribunal de Justiça de Goiás, em atendimento a pedido da OAB-GO, suspendeu os efeitos da Lei Estadual nº 21.784, de 17 de janeiro de 2023, que proibia visitas íntimas nos estabelecimentos penitenciários de Goiás. Em razão dessa decisão, o Governador Ronaldo Caiado foi a público, manifestando posicionamento que o PCB-GO rechaça e repudia.
Entre colocações subjetivas, como se dizer “surpreendido” e “frustrado” com a decisão, Caiado emitiu falas que simplificam a questão da visita íntima, sem considerar o seu importante papel social e a inconstitucionalidade da lei. E, ainda que o presidente do TJ-GO, Carlos França, tenha justificado asseverando que a medida promovia “violações massivas” de direitos fundamentais e humanos, o Governador foi categórico ao afirmar que as visitas íntimas são utilizadas com a finalidade de serem “porta-voz para mandar matar alguém”, “mandar fazer o tráfico de uma região para outra”, “assassinar as autoridades”. Recorreu a dados numéricos, mais precisamente à adição simples, reduzindo a complexidade do tema a custos: “Para cada duas vagas [em presídio] para bandido em Goiás, eu deixei de dar uma casa de qualidade para o cidadão vulnerável. Uma casa me custa R$ 130 mil, dou ela de graça, só para fazer vaga de presidiário”; “eles custam ao Estado de Goiás mais de RS 3 mil por mês cada um”. Em sua síntese conclusiva, acrescentou: “Então agora eu sou obrigado a construir um quarto de motel dentro dos presídios? É uma inversão completa das prioridades de um governo”.
Um dado inicial que precisa ser destacado é que a visita íntima está prevista em resolução federal e foi interrompida como medida sanitária durante a pandemia, não sendo, portanto, uma novidade. Também é importante pontuar que, ainda que a Secretaria Nacional de Políticas Penais tenha um campo de consulta online para custo do preso para o sistema penitenciário – reforçando a ideia simplificada de objetificação de seres humanos como meros gastos públicos –, não constam os níveis de terceirização, de privatização e das mais variadas informações de orçamento que nos permitam compreender esses custos. Inclusive, está indicado nesse site que o governo de Goiás não enviou os dados do último levantamento, não nos sendo possível sequer a verificação para análise.
Também é importante registra que, conforme os dados de junho de 2022 do Infopen (Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional), disponíveis no mesmo site, a população carcerária de Goiás é de 28.085, dos quais quase 32% são presos sem condenação, 23% estão em regime semiaberto e 16% em regime aberto, indicando que muitos desses gastos, além de relativos, são voltados para manter na prisão pessoas que nem mesmo deveriam estar lá, como muitos dos que aguardam o julgamento e pessoas que cometeram roubo simples ou foram presas portando pequena quantidade de droga, em consonância com o próprio relatório acima citado. Convém acrescentar que uma parcela enorme da população carcerária é constituída de mulheres, homens e LGBTs pobres, predominantemente pretas/os e pardas/os e com baixíssima escolaridade. Uma análise crítica, que queira abarcar a complexidade da questão prisional, deve partir dessas ponderações iniciais, a fim de não cair na simplificação inerente à concepção burguesa que domina as instituições em geral.
Isso posto, com vistas a elucidar e contrapor os elementos explícitos e implícitos na fala do Governador, a pergunta central é: qual é a função do sistema prisional? Pergunta esta que pode ser esmiuçada em muitas outras: o que esperamos do sistema prisional? Ele deve ser um sistema de segregação de milhares de pessoas pobres, negras? É adequado que ele coloque no mesmo espaço pessoas que cometeram crimes muito graves, aquelas cujos crimes se resumem à metáfora do “ladrão de galinha” e outras que estão no aguardo de julgamento? Ele pode concentrar esses sujeitos em locais cujas condições de existência são abjetas, submetendo-os a doenças e às mais diversas formas de violência?
O que se tem hoje é um sistema prisional superlotado que destrói essa população carcerária, apagando seus referencias sociais, morais, éticos e políticos e brutalizando-a sistematicamente, e que elimina pessoas – há as que morrem por doença, por falta de assistência médica e tratamento adequado, há as quem morrem em razão das mais variadas formas de violência no interior de uma penitenciária, há as que o sistema se encarrega de eliminar ainda nas ruas. O que se tem consolidado, portanto, é um sistema punitivista, de segregação completa, de eliminação progressiva de seres humanos.
A fala do Governador Ronaldo Caiado emerge dessa lógica acerca de como pensar o direito e o Poder Executivo, muito na direção da famosa política de Rudolph Giuliani, prefeito de Nova Iorque na década de 1990, que alcunhou a famosa frase: “tolerância zero contra o crime”. Essas concepções fundamentadas no punitivismo e no segregacionismo – entre as quais se insere a ação de proibir a visita íntima e combatê-la a todo custo – são parte do processo de brutalização, mediado pela tortura social, psicológica e cultural, cuja lógica é a da liberação das violências àquela e àquele julgados como sem direitos. É importante, pois, a clareza de que essa concepção é apenas a ponta de um iceberg de todo um sistema de ideias que percorre formal ou informalmente as polícias, tanto militar quanto civil, e avança, ainda, para o Judiciário, o Legislativo e o Executivo
Uma problematização importante está no entendimento do porquê desse posicionamento do governador. A OAB-GO manifestou-se lamentando o ocorrido e reafirmando que “a dignidade humana é um direito inalienável, inafastável e que não há possibilidade de o legislador estadual limitar essa dignidade”. Ainda assim, Caiado discursa em contraposição à lógica dos direitos humanos, que, mesmo num viés liberal-progressista, aponta para a humanização.
Esse é um discurso que envenena a população contra as pessoas aprisionadas e contra todas e todos que estão no movimento dos direitos humanos. Esse tipo de discurso tem potencial para construir ou consolidar subliminarmente um campo de legitimação dos abusos policiais, em que até a pena de morte “informal” é aceitável e válida. É um discurso que, para além do conservadorismo, do segregacionismo, do punitivismo, atua para o acirramento do ódio, inculcando a cultura do “bode expiatório” e robustecendo a ideia generalizada de que existem, de um lado, as/os cidadãs/ãos de bem e, do outro, bandidas/os, incluindo aí qualquer indivíduo que a/o defenda dessa condição de brutalização. Tal discurso fez parte do Governo Bolsonaro e está presente no bolsonarismo, com fortes elementos protofascistas.
Além de toda a responsabilidade que têm os programas policiais televisivos sensacionalistas e o jornalismo televisivo e impresso na condescendência com a violência policial, aceitando as explicações dadas pelas mortes efetivadas por policiais e não se comprometendo com o jornalismo investigativo, eles também compartilham da responsabilidade de fazer circular, sem problematização, esse discurso do Governador, retroalimentando o ultraconservadorismo moral religioso e a cultura do ódio e do revanchismo – exatamente os mesmos que ocasionaram momentos de terror em 8 de janeiro e devastaram as sedes dos três poderes em Brasília.
Por isso mesmo, o PCB repudia veementemente o discurso de Caiado. O sistema prisional deve ser compreendido como um sistema de reumanização, reconstrução de possibilidades e ressocialização, de modo que ocorram a retomada de educação e de profissionalização e a reinserção nas relações sociais. Combatemos o “sistema industrial carcerário”, em alusão a Angela Davis, cujas décadas de pesquisa sobre o tema lhe permitiram assegurar que “o encarceramento em massa nunca trouxe soluções para conter a violência”. Por conseguinte, é necessário restringir o aprisionamento somente aos casos de crimes graves. Deve-se apostar em um processo de ressocialização e humanização, em que o gênero, a raça e a classe não se colocam como os fatores balizadores a perpetuarem a exclusão e a repressão.