UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL – 1900 a 1988 – parte 1

escrito por Grete Nair Tirloni¹

O presente texto está dividido em duas partes. A segunda parte pode ser conferida clicando aqui.


Este artigo surgiu a partir do Processo Formativo sobre o Sistema Único de Saúde (SUS), realizado em 21 de janeiro de 2023, na sede do PCB Goiás. Na oportunidade, foi abordada a política de saúde, a sua trajetória, a construção do SUS e o controle social. Pretende-se com esse texto trazer um pouco da trajetória da saúde no Brasil, entre 1900 e 1988, contribuindo com a formação de militantes e com a construção de uma linha política classista no movimento de saúde em Goiás.

A política de saúde no Brasil no início do século XX

A criação do Soroterápico Federal, em 25 de maio de 1900, foi um fato importante para a política de saúde no Brasil. Pretendia desenvolver soros e vacinas contra a peste bubônica, que se espalhava pelo território brasileiro. O sanitarista Oswaldo Cruz, após ser nomeado para Diretoria Geral de Saúde Pública, em 1902, ampliou as atividades do Soroterápico Federal, agregando à instituição um novo padrão de política sanitária.

No contexto do novo padrão de política sanitária, em 1903, Oswaldo Cruz dividiu a cidade em dez distritos sanitários, assegurando um Delegado de Saúde responsável em cada um deles, com vista ao combate mais eficaz à febre amarela.

Em 1904, o Decreto Legislativo nº 1.151, de 5 de janeiro, instituiu o Serviço de Profilaxia da Febre Amarela e a Inspetoria de Isolamento e Desinfecção – responsável pelo combate à malária e à peste no Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano, ocorreu a promulgação do Decreto Legislativo nº 1.261, de 31 de outubro, que tornou a vacinação e a revacinação obrigatórias.

A forma de organização para o enfrentamento das endemias teve como base o método militar para mapeamento e intervenção nas zonas a serem sanitizadas. As equipes médicas eram acompanhadas pela força policial, que usava a repressão para auxiliar no processo de intervenção sanitária. Esse processo causou revolta em parcela da população, culminando em resistência à obrigatoriedade da vacinação. Tal processo ficou conhecido como a Revolta da Vacina.

Conforme Luana Dandara (2022), no artigo “Cinco dias de fúria: Revolta da Vacina envolveu muito mais do que insatisfação com a vacinação”, aqueles episódios envolveram muito mais do que insatisfação com a vacinação. Segundo a autora:

A vacina antivariólica já havia sido desenvolvida em 1796, pelo médico Edward Jenner, na Inglaterra. No Rio de Janeiro, a vacinação da doença era obrigatória para crianças desde 1837 e para adultos desde 1846, conforme o Código de Posturas do Município. No entanto, a regra não era cumprida porque a produção de vacinas era pequena, tendo alcançado escala comercial apenas em 1884. O imunizante também não era bem aceito pelo povo, ainda desacostumado com a própria ideia da vacinação, e diferentes boatos corriam na época, como o de quem se vacinava ganhava feições bovinas. (DANDARA, 2022, online)²

A política de saúde sob a influência do movimento operário

As primeiras décadas do século XX foram marcadas pelo início do processo de industrialização³ e, consequentemente, pelo crescimento quantitativo da classe operária. Essa classe não tardaria em gerar um efervescente movimento operário reivindicativo.

Destaca-se o Movimento dos Ferroviários. Esses trabalhadores, em razão das péssimas condições de trabalho, colocaram-se em movimento de luta desde 1906. “De 1906 em diante, praticamente não passou ano sem que se registrasse paralisação em estradas de ferro. Os ferroviários engrossaram inclusive a histórica greve geral de 1917, em São Paulo” (WESTIN, 2019, online). Na época em questão, as ferrovias eram o principal meio de escoamento da produção e de transporte de pessoas. Portanto, um setor estratégico no movimento grevista.

A organização e a mobilização operária despertaram grandes preocupações às frações burguesas e às suas elites políticas serviçais. Eloy Chaves, deputado federal (SP) na época, preocupado em conter o que poderia decorrer da organização das/os trabalhadoras/es, propôs a criação de lei que institucionalizasse a Previdência Social e a Saúde Previdenciária no Brasil, o que efetivamente ocorreria no dia 24 de janeiro de 1923, quando foi promulgada a chamada Lei Eloy Chaves . A Lei foi uma ação preventiva das elites políticas e das frações burguesas para acabar com o que Chaves compreendia como a “áspera luta de classes”. De fato, ele conhecia bem as paralisações operárias, pois havia sido Secretário Estadual de Justiça e Segurança Pública do Governo de São Paulo, inclusive, assumindo papel repressivo central na Greve Geral de 1917, inicialmente mandando a polícia atacar as/os manifestantes e, no fim, mediando negociações entre grevistas e empresários (WESTIN, 2019).

A Lei Eloy Chaves criou as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), com destaque inicial para a CAP dos Ferroviários. Cada CAP ficaria responsável pelo pagamento das aposentadorias de uma empresa específica e tinha uma abrangência maior, incluindo da saúde às coberturas de aposentadorias das/os trabalhadoras/es.

As frações burguesas e as suas elites políticas não ignoraram por completo a necessidade do combate às endemias e o desenvolvimento de prevenção no meio rural, contexto no qual encontrava concentrada a maior parte da população brasileira. Embora com atraso relativo no tocante aos referidos combate e desenvolvimento em determinados contextos urbanos, foi promulgado o Decreto nº 13.001, de 1º de maio de 1918, dando início às atividades do Serviço de Profilaxia Rural. Todavia, esse órgão, subordinado à Inspetoria de Serviços de Profilaxia, somente alcançaria efetividade em suas ações anos depois de sua criação.

Da política de saúde dos anos 1930 ao golpe burgo-militar de 1964

A passagem da década de 1920 para a década de 1930 foi marcada por várias transformações relacionadas ao mundo do trabalho, com destaque para a Revolução de 1930, catalisadora de muitas contradições sociais e políticas daquele período. Boris Fausto (2003, p. 245-246) expõe o seguinte panorama:

Um dado oculto na revolução é o papel desempenhado pela classe operária que aparece mais como um problema do que propriamente como personagem. É possível que a definição dos diferentes setores burgueses, na década de 20, se tenham feito levando em conta o proletariado, sobretudo a partir de 1929, quando a crise gera uma série de greves nos grandes centros, tendo por objetivo a luta contra o desemprego e a defesa dos níveis de salário. O inconformismo das classes médias não é estranho a esta presença, embora obedeça a motivos específicos e a aliança se define, em parte, pela maior atenção dedicada aos problemas sociais, ao defender a aplicação da lei de férias, lei do salário mínimo, com fundamentos nos compromissos assumidos pelo Brasil na qualidade de signatário do Tratado de Versalhes e membro do Bureau Internacional do Trabalho. Lembremos ainda que a existência do Partido Comunista, fundado em 1922, abre a possibilidade de uma nova opção no seio dos movimentos revolucionários existentes, como acontece no caso da mais importante ruptura no interior do tenentismo, quando Prestes se nega a apoiar a Revolução de 1930 e proclama sua adesão ao socialismo, embora não imediatamente ao PCB, o que se verificaria em 1934.

Essas transformações tiveram forte influência na condução no desenvolvimento dos conceitos de saúde e de previdência da época. Com objetivo de abranger mais categorias profissionais, já em um contexto de contensão de gastos e, portanto, de redução da abrangência previdenciária nos anos 1930, Getúlio Vargas institui as Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs). Oliveira (2012, p. 36) esclarece que as CAPs foram transformadas nos IAPs e as “principais categorias de profissionais beneficiados foram: marinheiros, bancários, comerciários, industriários. O Estado brasileiro passou a colaborar com 15% do total da receita, e o restante era custeado pelos trabalhadores e patrões”.

No mesmo período foram criados o Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP) e o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC). Nos anos 1930 também foi instituído o Conselho Nacional de Saúde (CNS), um marco importante para o desenvolvimento da política de saúde no Brasil.

A década de 1940 se iniciou tendo como pano de fundo a II Guerra Mundial. Havia uma disputa de influência sobre o Brasil entre Estados Unidos e Alemanha. Até 1942, o Brasil se declarava neutro, mas, após pressão dos Estados Unidos e outras tratativas de cunho econômico, que culminariam no financiamento da Companhia Siderúrgica Nacional, passa a apoiar os Aliados.

Em plena guerra mundial, o governo brasileiro, em convênio com o norte-americano, estruturou o Serviço Especial de Saúde Pública (SESP). Sua atuação norteou-se pela criação de postos permanentes, centros de saúde e postos rurais, em várias regiões, como os Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo, na contratação de sanitaristas em tempo integral e de uma equipe auxiliar com laboratoristas, escriturários, médicos consultantes e visitadores. Este órgão foi importante na introdução dos conceitos de desenvolvimento, de participação comunitária e de educação de grupos. (OLIVEIRA, 2012, p. 37)

Um ponto importante para o desenvolvimento da política de saúde no Brasil foi a criação do Ministério da Saúde, em 1953, e do Departamento Nacional de Endemias Rurais (Deneru), em 1956. Nesse período, a política de saúde, que surgiu amarrada à política de previdência, passou a tratar também da saúde preventiva.

Foi uma política de saúde pública com ênfase na prevenção de doenças transmissíveis, aliada a uma política de saúde previdenciária restrita aos contribuintes da previdência e seus dependentes.

Na prática, os anos do desenvolvimentismo mantiveram a lógica de organização do modelo político em vigor para a saúde, com as ações e serviços de saúde pública de um lado e o sistema previdenciário de outro, com políticas isoladas de saúde que atendiam a diferentes objetivos. Uma política de saúde pública universal e com ênfase na prevenção das doenças transmissíveis, e uma política de saúde previdenciária, restrita aos contribuintes da previdência e seus dependentes, com ênfase na assistência curativa. O direito à saúde integral ainda não era um direito do cidadão brasileiro. (BAPTISTA, 2007, p. 40)

O avanço da industrialização fez com que aumentasse o número de operários demandantes de um sistema de saúde. Em 1960, foi aprovada a lei que iguala os direitos de todas as trabalhadoras e de todos os trabalhadores, mas que não foi posta em prática. Nesse mesmo ano, o Sesp foi transformado em Fundação Serviço Especial de Saúde Pública (FSESP), vinculada ao Ministério da Saúde, por meio da Lei nº 3.750, de 11 de abril de 1960.

No ano de 1961, ocorreu a regulamentação do Código Nacional de Saúde – Lei nº 2.312, de 3 de setembro de 1954 –, que estabeleceu as Normas Gerais sobre Defesa e Proteção da Saúde por meio do Decreto nº 49.974-A, de 21 de janeiro de 1961.

Após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, com consequente posse de João Goulart, teve curso um processo de radicalização política e social. Atente-se para o fato de que a classe trabalhadora urbana e rural, desde o ano de 1956, passou a apresentar uma crescente organização e mobilização reivindicativa. Organização e mobilização intensificada em consequência do conflito distributivo entre capital e trabalho, acarretado pelo impacto da inflação que decorreu da emissão monetária voltada para subsidiar a construção de Brasília, o que foi parte determinante da crise política e institucional no país no início dos anos 1960.

No Congresso Nacional, alguns dos eleitos representavam o capital internacional, outros queriam o desenvolvimento nacional. Nesse contexto, a política econômica estava marcada pela oscilação entre liberalismo e controle estatal. No cenário internacional, reproduziam-se diversas experiências socialistas, com destaque para a da URSS, da China e de Cuba. Sobretudo, as Revoluções Chinesa de 1949 e Cubana de 1959 estimulavam processos revolucionários latino-americanos.

Uma ampla frente golpista, reunindo empresários, elite política, alta cúpula militar, oligarquias rurais, elite religiosa e mídia burguesa, insuflada por financiamento do imperialismo norte-americano e arregimentando apoio social por meio de uma raivosa campanha anticomunista, fez emergir o golpe burgo-militar de 1964. A exemplo do Golpe do Estado Novo, as frações burguesas e a elite política novamente abandonavam a política de aprovação de leis que efetivam concessões seletivas a “conta gotas”, em uma lógica de passivização da classe trabalhadora, para a criação de um regime político altamente repressivo.


¹ Graduada em Serviço Social, diretora do Sindicato dos Trabalhadores Federais em Saúde e Previdência dos Estados de Goiás e Tocantins (SINTFES-GO/TO) e militante da Corrente Sindical Unidade Classista

² Tal citação é digna de um recorte, pois remete à história recente do Brasil, quando, no contexto de uma crise capitalista orgânica e estrutural, acompanhada de aumento das desigualdades sociais e de reestruturação dos processos de trabalho sob a ótica neoliberal – com generalização do desemprego, do subemprego e da “pejotização” da classe trabalhadora –, o aviltamento social, econômico, político e cultural da classe fica encoberto pelo discurso do empreendedorismo e um mal-estar difuso, dando lugar a aspectos como ressentimentos, ódios difusos e reposição de explicações mítico-religiosas da realidade. Portanto, sob contexto de brutalização e de perda de referências, é criado um ambiente propício ao fortalecimento de discursos anticientíficos, a exemplo do discurso antivacina.

³ A industrialização brasileira encontrava-se ainda embrionária e prevalecente no Rio de Janeiro e em São Paulo.

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