UMA BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE NO BRASIL – 1900 a 1988 – parte 2

escrito por Grete Nair Tirloni¹

O presente texto está dividido em duas partes. A primeira parte pode ser conferida clicando aqui.


A política de saúde do regime burgo-militar à Constituinte de 1988

A saúde pública, assim como a condição de vida da maioria dos brasileiros, piorou muito com a instituição do regime de 1964,  pois o golpe de Estado em si organizou os interesses da classe burguesa nas suas mais diversas frações socioeconômicas. Esse período terminou marcado pela redução do atendimento da saúde preventiva e priorização da lógica do seguro social – saúde vinculada ao trabalho formal.

Havia um movimento de “higienização social”, ou seja, aumentou a institucionalização das/os filhas/os das pessoas pobres, sob a justificativa de que era necessário promover a educação primária e ginasial, autoritária e profissional, com objetivo de criar um certo perfil de trabalhadoras/es. Nesse processo, destacou-se a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor² (Funabem). No que tange à saúde da população impossibilitada de pagar por assistência médica, esta ficava por conta do assistencialismo e das Santas Casas.

Teve curso a junção dos IAPs mediante a criação do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS), em 1966, unificando os benefícios das/os trabalhadoras/es em geral. Todavia, não houve investimento na infraestrutura para atendimento, o que terminou por sobrecarregar o sistema. Mas, não menos importante, recursos financeiros da previdência e da saúde eram desviados para outras finalidades, principalmente para grandes obras de infraestrutura como rodovias, pontes etc. O subfinanciamento da saúde chegou a um ponto em que resultou no reaparecimento de doenças erradicadas no passado. 

Outros fatos importantes para a política de saúde, no contexto do regime burgo-militar, foram a criação do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS), em 1974, e, do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), em 1977. Este último, baseado em uma forma mercadológica, no qual se estabelecia uma “mediação” entre as demandas das/os trabalhadoras/es e os prestadores (privados) de serviços de saúde. 

Em face da “questão social” no período 64/74, o Estado utilizou para sua intervenção o binômio repressão-assistência, sendo a política assistencial ampliada, burocratizada e modernizada pela máquina estatal com a finalidade de aumentar o poder de regulação sobre a sociedade, suavizar as tensões sociais e conseguir legitimidade para o regime, como também servir de mecanismo de acumulação do capital. (Bravo, 2009, p. 06)

Em 1978, ocorreu a Conferência Internacional de Assistência Primária à Saúde, realizada na cidade de Alma-Ata (URSS e atual capital do Cazaquistão), com forte repercussão. 

Entre os temas tratados estavam: a participação comunitária, a cooperação entre os diferentes setores da sociedade e os cuidados primários de saúde, além de forte oposição à privatização e mercantilização da medicina sob o comando da Previdência Social. Os propositores de reformas no atendimento público de saúde, reivindicavam a universalização do direito à saúde, com a unificação dos serviços prestados pelo Inamps e Ministério da Saúde em um mesmo sistema, e a integralidade das ações.  (OLIVEIRA, 2012, p. 38) 

A crescente resistência ao regime burgo-militar – sobretudo, a partir dos efeitos repressivos que o AI-5 (Ato Institucional nº 5, de 1968) acarretou contra trabalhadoras/es, estudantes e militantes de esquerda –, as expectativas frustradas quanto à “divisão do bolo” gerado pelo milagre econômico e o empobrecimento da população tiveram como consequência a retomada da organização popular. A crise econômica que se abriu, em 1973, cujos efeitos se agravaram com a segunda crise do petróleo, de 1979, ao mesmo tempo que impulsionava a reorganização do movimento de trabalhadoras/es e o empurrava para a mobilização, gerava fissuras e radicalizava disputas nas frações burguesas e na elite política. Nesse contexto, teve início o processo de reabertura – “lenta, gradual e segura” –, marcada pela anistia dos responsáveis pelos crimes cometidos durante o regime.

Em que pese as características do processo de abertura e da transição progressiva do regime burgo-militar para o que viria a ser a chamada “Nova República”, estas não foram capazes de impedir a retomada de mobilizações sociais amplas, a exemplo do campo de luta em torno da saúde e da previdência. Conforme Bravo (2009, p. 8-9),

A saúde, nessa década, contou com a participação de novos sujeitos sociais na discussão das condições de vida da população brasileira e das propostas governamentais apresentadas para o setor, contribuindo para um amplo debate que permeou a sociedade civil. Saúde deixou de ser interesse apenas dos técnicos para assumir uma dimensão política, estando estreitamente vinculada à democracia. Dos personagens que entraram em cena nesta conjuntura, destaca-se: os profissionais de saúde, representados pelas suas entidades, que ultrapassaram o corporativismo, defendendo questões mais gerais como a melhoria da situação saúde e o fortalecimento do setor público; o movimento sanitário, tendo o Centro Brasileiro de Estudo de Saúde (CEBES) como veículo de difusão e ampliação do debate em torno da Saúde e Democracia e elaboração de contra-propostas; os partidos políticos de oposição, que começaram a colocar nos seus programas a temática e viabilizaram debates no Congresso para discussão da política do setor e os movimentos sociais urbanos, que realizaram eventos em articulação com outras entidades da sociedade civil.

A autora também realçou o marco em torno da discussão da saúde no Brasil, representado pela preparação e realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em março de 1986, em Brasília,  com os seguintes temas centrais: a saúde como direito inerente a personalidade e à cidadania, a reformulação do Sistema Nacional de Saúde e o financiamento setorial (Bravo, 2009). A partir da conferência, que representou e organizou anseios das/os trabalhadoras/es da saúde e da sociedade civil, foram materializadas demandas que os movimentos populares esperavam para saúde brasileira.

Na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988, referentemente à questão da saúde, teve curso a polarização entre setores liberais e setores populares acerca do que se poderia esperar para a saúde pública no Brasil e como esta deveria se organizar. A polarização não impediu o desenvolvimento de um conceito mais amplo de seguridade social, na qual a previdência foi tratada como política contributiva, a assistência deveria ser estendida a quem dela necessitar e a saúde se constituiria em direito universal. Os artigos 196 e 198 da Constituição Federal de 1988 trazem o conceito e ações a serem desempenhadas por esta política:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;

II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;

III – participação da comunidade.

Mesmo com a ampliação do conceito de saúde, a Constituição de 1988 em si já trouxe elementos que permitiram a atuação de instituições privadas como “complemento” ao SUS, em seu artigo 199.

O cenário político pós-redemocratização foi marcado pela lógica liberal e pela privatização progressiva dos serviços públicos. A luta pelo SUS foi pauta constante da sociedade brasileira, pois a saúde, sucessivamente, foi tratada como mercadoria. Portanto, visando ao lucro, foi paradigmática a lógica de investimento centrada mais no tratamento de doenças do que na prevenção.

Passadas mais de três décadas da criação do SUS, mantém-se a necessidade da constante mobilização em sua defesa. Isso porque o capitalismo e a contradição de classe são a base material sobre a qual se apoia a polarização entre setores liberais, representando interesses econômicos privatistas e setores populares, empenhados na defesa de um SUS universal, gratuito e de qualidade.


¹ Graduada em Serviço Social, diretora do Sindicato dos Trabalhadores Federais em Saúde e Previdência dos Estados de Goiás e Tocantins (SINTFES-GO/TO) e militante da Corrente Sindical Unidade Classista.

² Termo usado para definir os filhos dos pobres.

Referências

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