Ronaldo Caiado e o Agronegócio Goiano

Escrito por Gabriel Quinta*

Foto: Cristiano Silva

Em Goiás, abriu-se uma grande disputa entre a burguesia latifundiária e o representante dela no governo estadual. Essa batalha se demonstrou de forma muito clara na abertura da Tecnoshow, a mais importante feira de tecnologia em agronegócio de Goiás, que em 2023 realizou sua vigésima edição, de 27 a 31 de março, na cidade de Rio Verde.

Latifundiários, amistosamente chamados de “produtores rurais” pela mídia e pelas instituições burguesas, vaiaram o governador Ronaldo Caiado durante sua fala na abertura do evento. O motivo? A implementação de um imposto de vultoso 1,65% sobre o agronegócio goiano, cujos benefícios fiscais se destinam a um fundo de infraestrutura rodoviária voltado para atender demandas do próprio setor agropecuário. Lembramos que opera no Brasil a Lei Kandir, que isenta do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) as exportações de produtos primários e semielaborados. Desde 1996, “produtores rurais” recebem esse incentivo para exportar sua produção bruta. Esses benefícios deixam evidente o balcão de negócios que é o Estado, constituído e controlado pelos agentes da fome e da miséria diretamente.  

Entre vaias, Caiado se viu na necessidade de defesa no evento de abertura da Tecnoshow e algumas de suas falas se destacam pela fundamentação de caráter eminentemente subjetivo e pelo enorme teor de descolamento da realidade e das necessidades da classe trabalhadora regional:

“Não me julguem por um gesto, me julguem pela minha história.”

Não nos esqueçamos de sua gloriosa história. Não somente da história desse herdeiro, que atualmente é o governador de Goiás, mas também da de toda a sua família, cujo primeiro registro na região que hoje forma Goiás foi no final do século XVIII. Nesse período, a família Caiado, como qualquer outra da classe dominante, formou-se nas universidades brasileiras –  ainda mais inacessíveis que hoje – e recebeu por doação do Rei de Portugal terras virgens, chamadas de sesmarias, com a finalidade de ocupá-las e explorá-las, o que trouxe progresso e desenvolvimento para as elites e escravidão, morte e sangue para a classe dominada. Nesse percurso histórico, vale destacarmos o pioneirismo de Totó Caiado na formação reacionária da família. Formado em Direito com duas menções honrosas, foi combatente da Revolta Armada em 1893 pelo lado das forças legalistas, iniciando aí uma grande tradição de defesa da ordem dominante¹. 

Já em sua trajetória pessoal, Ronaldo Caiado, como também membro da classe dominante goiana bem estabelecida na região, estudou Medicina e, além de cuidar das terras da família, quis integrar a defesa institucional dos seus interesses e da burguesia agrária. Presidiu a União “Democrática” Ruralista (UDR) de 1986 a 1989. Essa entidade, fundada ainda no período da ditadura empresarial militar brasileira, tem como mote “a preservação do direito de propriedade” e o combate à reforma agrária. Não surpreendentemente, foi em Goiânia, em 1985, a fundação da UDR nacional, sediada em Brasília para pressionar o Congresso Nacional, na figura da bancada do boi – designação capaz de sintetizar sua clara intenção: a Frente Parlamentar da Agropecuária. 

Em seu currículo parlamentar repleto de visões reacionárias, de extrema-direita, em um delineamento antipovo, Caiado carrega a honra de ter sido um dos principais articuladores do Golpe de 2016 contra a então Presidenta Dilma, como também de fazer corpo, em 2018, junto a 19 senadores em uma carta aberta ao STF, que argumentava em defesa da manutenção de um entendimento judicial para manter o atual presidente Lula preso. Além de uma perseguição à esquerda institucional brasileira, Caiado também conta com um ataque constante ao MST, reprimindo de forma violenta as ocupações da organização e consolidando um aparato de espionagem ao Movimento2. Como sempre, ele mantém a sua coerência em defender o capital em detrimento da vida humana. Em concordata com seu reacionarismo, também profere, sob vaias dos latifundiários, as seguintes frases:

“Só nos últimos 35 dias houve 16 invasões. Nenhuma continuou por mais de 24 horas.”

Essa fala se posta em contexto da ocupação da Fazenda São Lukas, no município de Hidrolândia, e choca pelo teor de defesa irrestrita da propriedade privada agrária. O Governador constrói uma ideia de invasão, em vez de ocupação, e ignora que essa fazenda foi desapropriada em 2009 pela União por ser palco de um grande esquema de tráfico internacional de mulheres para a prostituição em solo europeu. Nessa terra, era iniciado o aliciamento de mulheres, incluindo algumas adolescentes, para que fossem prostituídas nos bares de Zurique, em uma prática análoga à de trabalho escravo por dívidas. No esquema, cobrava-se a viagem e os quartos em que se prostituíam e aplicavam-se multas àquelas que não cumpriam as ordens. 

Para advogar contra as vaias e ressaltar a incoerência delas, Caiado se valeu de seus feitos recentes em defesa dos “produtores rurais” e citou, em tom de conquista, o uso da violência policial para expulsar 600 famílias das terras que foram palco desse crime.

Nesse ponto, convém ultrapassar o caso específico e avançar no contexto da conduta de defesa à propriedade privada. Esse episódio do Governador, atravessado por uma lógica inerente à classe que representa e a que pertence, é somente o ponto de partida que nos permite, por meio de mediações, ver além das aparências e chegar a uma raiz comum ao sistema capitalista de produção. Para avançar nesta análise, valemo-nos do Gráfico 1 e da Tabela 1 a seguir, que mostram dados de 2021 e 2022 referentes à distribuição percentual da segurança alimentar e dos níveis de insegurança alimentar nas macrorregiões do Brasil3.

Gráfico 1. Distribuição percentual da Segurança Alimentar e dos níveis de Insegurança Alimentar (IA leve, moderada e grave) nas Unidades da Federação, segundo as macrorregiões do Brasil. Fonte: Rede PENSSAN, 2022.
Tabela 1. Distribuição percentual de domicílios e moradores (n), por condição de Segurança Alimentar e níveis de Insegurança Alimentar (IA leve, moderada e grave) e localização do domicílio – Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Fonte: Rede PENSSAN, 2022.

O Gráfico 1 e a Tabela 1 nos escancaram uma realidade presente no seio do povo goiano. Enquanto o governador Caiado comemora a crescente lucratividade do agronegócio e disputa o poder com outras frações da burguesia agrária, mais de 850 mil cidadãos (12%) padecem na miséria e na fome absoluta e cerca de 3 milhões (43%) sofrem com falta de refeições diárias. Mais da metade dos nossos conterrâneos conhecem a face mais cruel do agronegócio brasileiro. Esse é o contexto da disputa evidenciada na Tecnoshow.

Essa disputa por 1,65% de contribuição para o Fundo de Investimento em Infraestrutura criado por Caiado, mesmo vetada pelo STF, testemunha o modo como o capital produz a sua lógica de eterna expansão, colocada como única demanda a ser atendida. Essa taxa seria somente para “produtores rurais” que já contavam com um regime tributário diferenciado, com porcentagens consideravelmente menores. Somando-se esses regimes diferenciados e a Lei Kandir, cria-se o paraíso dos latifundiários. Eventuais casos de trabalho análogo à escravidão4 também formam o terreno fértil da exploração capitalista em consonância com o interesse do governo de Goiás.

“Nosso produtor soube se posicionar estrategicamente no mercado. Teve visão para aproveitar as oportunidades e trabalhou duro para entregar resultados.”5

Aqui, em meio à crise alimentar avassaladora em Goiás, Caiado comemora a alta da exportação recorde do agronegócio em 2022: US$ 11,7 bilhões foi o que o setor arrecadou com exportação de 18 milhões de toneladas – soja, carnes congeladas e cereais foram os setores que mais lucraram com essa exportação. Nos quatro anos de seu primeiro mandato, a burguesia goiana celebrou a alta de sua lucratividade, observando a receita com as vendas externas aumentar 115,9%. 

A fome em Goiás nunca teve como causa a falta de alimentos. É uma escolha feita pela classe dominante representada pelo Governo. A produção, bem como sua utilização, não tem como destino a mesa do povo brasileiro. E não faria sentido ser de outra forma dentro do sistema produtivo em que vivemos. É por isso mesmo que os “produtores rurais” decidem o que, quando e como será aplicado o trabalho.

A Tabela 2 sintetiza os dados da Pesquisa Agrícola Municipal, desenvolvida pelo IBGE, relacionando os produtos agrícolas, a área plantada e a quantidade produzida no Estado de Goiás e fazendo um paralelo entre os anos de 2019 e 2020⁶:

Tabela 2.  Produção agrícola em Goiás de 2019 a 2020. Fonte: IBGE; IMB, 2022.

A análise da Tabela 2 nos permite concluir que 6 milhões de hectares nas mãos dessa burguesia produziram 26 milhões de toneladas, dos quais 18 milhões foram para exportação, sendo a maior parte da área destinada à soja-milho (safra e safrinha) e à cana-de-açúcar. Os interesses de expansão do capital, em sua forma especialmente agudizada nas regiões dominadas pelo agronegócio, não produzem e nunca produziram alimentos. Eles produzem e sempre produzirão dinheiro. 

Nesse estágio de nossa análise, citamos uma fala de Caiado na ocasião dos protestos dos “produtores rurais” na Tecnoshow 2023: 

 “Podem não concordar, posso ser contestado, mas nunca fui criticado por corrupção”.

Sem entrar no mérito das acusações de que suas campanhas tenham sido bancadas por um esquema de Carlinhos Cachoeira7 ou da condenação por propaganda eleitoral antecipada8 e de outros assuntos polêmicos, buscaremos sair do juspositivismo que essa frase do Governador de Goiás carrega em si e adentrar no significado verdadeiro que é considerado perante a classe trabalhadora. 

Fala-se amplamente da corrupção como se o Estado fosse um ente separado das classes sociais. Fala-se como se fosse um mero desvio de caráter de um ou outro político. Com isso, exacerba-se o esquecimento de que a verdadeira corrupção é aquela que condena nosso povo à morte e à inanição em razão de escolha política. Uma escolha que determina quem decidirá o que será produzido e para quem isso será vendido. Essa decisão – feita não pelo Caiado, mas defendida por ele – aprofunda sobremaneira a concentração do capital agrário e sua expansão, em um movimento que distancia ininterruptamente quaisquer interesses que possa vir a ter nossa classe. Ao mesmo tempo, criminaliza quem busca dar uma razão social para o trabalho e rebate com violência o uso de terras abandonadas e terras que de nada nos servem.

A Operação Lava Jato veio para consolidar uma visão torpe e rasa de que as raízes das mazelas sociais são frutos de corrupção política. Amplificou, com o pilar da mídia burguesa, a imagem de engravatados frente a um mandato político como seres inerentemente ruins. Escandalizou a perda de poder de compra, a violência, a falta de infraestrutura urbana, a falta de moradia, transporte, trabalho e alimentação com base na criação de um vilão comum. E isso, enquanto a esquerda era demonizada e o mercado louvado. Assim, todas essas forças neoliberais e burguesas pressionaram – e conseguiram – por uma austeridade que, junto ao “combate extensivo” da corrupção, salvaria o Brasil. E, personificadas em figuras como Sergio Moro e Dallangol, Meirelles e Guedes, Temer e Bolsonaro, propiciaram ao Brasil conhecer os ditos heróis.

Equilíbrio fiscal, teto de gastos, austeridade, desmantelamento da máquina pública foram empurrados como um remédio para a doença da condição de vida precária da qual o agente patogênico é a corrupção. Ano após ano, golpe após tentativa de golpe, escândalo após escândalo, firmou-se no senso comum brasileiro essa fórmula mágica. Clamam pelo enxugamento do Estado porque é essencialmente corrupto e clamam pela atuação do mercado porque é sempre mais eficaz do que um dito burocrata corrupto.

Cumprindo o papel de lutar contra o povo, as mídias burguesas e hegemônicas, direcionaram o ódio do explorado para o lado oposto de sua emancipação. As raízes da miséria e do padecimento social vêm da incessante busca do capital para preservar a sua expansão. Se em presença de um governo reformista, que gere o capital de forma a dar o mínimo para a classe trabalhadora e garantir os lucros, já se formava uma trilha de sangue dos trabalhadores, um governo que abertamente defende a crescente exploração do trabalhador em nome do deus Mercado aliena e convence as massas de que quem nos explora possa nos salvar. 

A corrupção se torna um conceito abstrato com uma facilidade intrínseca de ser manipulada ao bel prazer de quem o usa. Nada mais é do que a utilização do aparato estatal por frações da burguesia em uma disputa constante entre si. As leis e as jurisdições contra a corrupção apenas inibem a violação do acordo entre senhores feito pela burguesia. Quem nos explora se mantém geração após geração.

Caiado rompeu com Bolsonaro, sim. Mas nem o governador nem o ex-presidente são figuras que carregam e causam a desgraça em si, são de fato representantes de um projeto político que, ao contrário da batalha egóica entre os dois políticos, nunca se rompeu.

Por paz, pão e terra lutaremos. Lutaremos, pois o nosso povo, cansado de assistir passivamente ao seu genocídio, decidirá por ser livre e senhor do seu próprio destino.


* Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e da Corrente Sindical Unidade Classista (UC).

¹ FREITAS, Lena Castello Branco Ferreira. Paixão e Poder: a saga dos Caiado. Goiânia: Canone, 2009.

² MPF pede posicionamento de Bolsonaro e Caiado sobre “espionagem de movimentos sociais” em Goiás. Brasil de Fato, 23 nov. 2021. Disponível em: https://mst.org.br/2021/11/23/mpf-pede-posicionamento-de-bolsonaro-e-caiado-sobre-espionagem-de-movimentos-sociais-em-goias/. Acesso em: 16 abr. 2023.

3 REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR (PENSSAN). Insegurança Alimentar e Covid-19 no Brasil. 2022. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2022/10/14/olheestados-diagramacao-v4-r01-1-14-09-2022.pdf. Acesso em: 16 abr. 2023.

4 SCHMIDT, Thales. Maior operação do ano resgata 212 trabalhadores escravizados em Goiás e Minas Gerais. MST (site), 20 mar. 2023. Disponível em: https://mst.org.br/2023/03/20/maior-operacao-do-ano-resgata-212-trabalhadores-escravizados-em-goias-e-minas-gerais/. Acesso em: 16 abr. 2023.

5 EXPORTAÇÕES do agronegócio goiano crescem 62,8% em 2022. Seapa-GO, 6 fev. 2023. Disponível em: https://www.agricultura.go.gov.br. Acesso em: 16 abr. 2023.

6 ALVES, Luiz Batista. Produto Interno Bruto 2010-2020. Goiânia: Instituto Mauro Borges de Estatística e Estudos Socioeconômicos, 2022. Disponível em: https://www.imb.go.gov.br/files/docs/publicacoes/pib-goias/PIB_Regional_2020.pdf.  Acesso em: 16 abr. 2023

7 LADEIRA, Pedro. Carlinhos Cachoeira financiou líder do DEM no Senado, afirma Demóstenes. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 mar. 2014. Seção Poder. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/03/1610687-carlinhos-cachoeira-financiou-lider-do-dem-no-senado-afirma-demostenes.shtml. Acesso em: 16 abr. 2023.

8 MONTEIRO, Matheus. Justiça nega recurso e mantém condenação de Caiado por propaganda eleitoral antecipada. Jornal Opção, Goiânia, 28 ago. 2018. Disponível em: https://www.jornalopcao.com.br/ultimas-noticias/justica-nega-recurso-e-mantem-condenacao-de-caiado-por-propaganda-eleitoral-antecipada-134434/. Acesso em: 16 abr. 2023.

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