As bruxas viraram viados! O estado de Goiás e a perseguição à população LGBT

Escrito por Arthur Ramos*


Não tem desculpa deixamos passar a boiada inteira

Sei que cê não é causa, você é o sintoma

Mas pode ser a solução do problema

Mona passou você riu

Quando ela virou a esquina enquanto cês ria

Foi morta viraram as costas nem viu

Não queremos hipocrisia

(Ser quem eu sou – Boombeat)

Nunca é demais afirmar que Goiás é um estado de extremo conservadorismo. Com suas bases históricas e sociais construídas em cima de uma oligarquia da terra e da política coronelista do século XIX/XX, a construção da identidade baseada na hetero-cisnormalidade está entranhada no senso comum da população, de uma forma ainda mais expressiva quando comparada ao cenário nacional. Não é por acaso que Bolsonaro, com suas pautas reacionárias, teve um expressivo aumento na quantidade total de votos no estado na eleição de 2022 em relação à de 2018.

Seguindo essa lógica e colocando em análise os dois principais espaços de governança de Goiás, vemos que o perfil dos eleitos se encontra dentro da direita em caminho à ultradireita. No governo estadual, Ronaldo Caiado, representante do ruralismo e do agronegócio, foi o maior articulador do impeachment contra a ex-presidenta Dilma Rousseff no Senado em 2016 e compôs a base de Bolsonaro desde 2018 – reforçando-o continuamente, mesmo se considerado certo distanciamento, como na conjuntura eleitoral de 2022, quando foi reeleito pela segunda vez em primeiro turno. Na prefeitura de Goiânia, Rogério Cruz, um desconhecido vereador colocado como vice de Maguito Vilela, que veio a falecer de covid-19 poucos dias depois de sua posse, é uma versão goiana de Marcelo Crivella no Rio de Janeiro: pastor da igreja Universal, já deu diversas declarações sobre como está a serviço da igreja, em todas as nuances que essa frase possa ter.

Ao analisarmos as instâncias legislativas, verificamos uma repetição desse processo. Na Câmara Municipal de Goiânia, em um universo de 35 cadeiras, apenas uma é ocupada por um partido “mais” à esquerda, o PT. Cenário parecido na Alego, onde, das 41 cadeiras, apenas três são dessa “esquerda”. Cabe aqui um grande parênteses para pontuar uma especificidade do cenário geral do estado. Em Goiás, os partidos de esquerda não possuem entrada alguma nesses espaços; nem mesmo aqueles fortemente voltados para a institucionalidade, como o PSOL, possuem sequer um único vereador eleito.

Por que é importante pontuar isso? Porque tem uma consequência prática e lógica imediata: concorre diretamente para o fim das políticas públicas voltadas para o atendimento das populações marginalizadas, em especial daquelas que vivem uma verdadeira guerra de sobrevivência contra o reacionarismo. É o caso da população LGBT. No início deste ano, o Programa Atena – Advocacy e monitoramento de Políticas Públicas para LGBTI+ denunciou um apagão nacional nas políticas públicas voltadas ao atendimento da população LGBT. Após ranquear os estados da nação em nota de 1 a 5, Goiás ficou em 11° lugar com nota menor que 3,0.1

Segundo o Dossiê 2021– Mortes e Violências contra LGBTI+ no Brasil2, Goiás é hoje o 12° estado que mais mata LGBT no país, estando Goiânia e Rio Verde empatadas em 14° lugar entre as cidades mais mortais do país para essas pessoas. Ao analisarmos as mortes da população T em específico, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), percebemos que, se de 2019 para 2020 caiu o número de mortes de Trans e Travestis no estado, de 2020 para 2021 houve uma bruta ascensão desse dado. O estado subiu cinco posições no ranking nesse pequeno intervalo de tempo, posicionando-se como o 7° mais mortífero do país3, isso sem contar as subnotificações.

Mesmo com esse cenário, atualmente Goiás não possui qualquer tipo de política pública para a superação desse quadro: não existem conselhos LGBT; poucas são as prefeituras que possuem pastas exclusivamente para pensar a questão LGBT; e a única instância do governo estadual que atua sobre a população LGBT – o Comitê Estadual de Enfrentamento à LGBTfobia no Estado de Goiás (Comeelg), que integra a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Seds) – é totalmente escanteada, não possuindo estrutura mínima necessária para funcionar, de instalações a recursos econômicos. Como resultado, o Comeelg, ao longo de três anos de funcionamento, não conseguiu avançar significativamente na proposição de política pública, seja pelo isolamento político, seja por restrições financeiras, ou ainda pelo fato de não ser respaldado pela própria militância LGBT do estado, visto que está composto por mais integrantes do governo do que da própria comunidade civil: apenas três ONGs podem participar simultaneamente.

Pensando em nível estadual, ainda é preciso fazer a denúncia sobre como a UFG, maior universidade de Goiás, não só vem se calando sobre o tema, mas se tornando conivente com tudo isso. Recentemente, o Hospital das Clínicas da UFG, terceirizado no processo de avanço da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), pediu sua retirada do programa de cirurgia de redesignação sexual e de tratamento hormonal4, o que está em confronto com o fato de que Goiás foi um dos primeiros estados a instituir esse tipo de política. Ao mesmo tempo, vemos a reitora interventora fechando acordos milionários para cuidar de eventos culturais da Secretaria de Estado de Cultura de Goiás (Secult).

Em Goiânia, vivencia-se uma situação um tanto mais complexa. A Secretária Municipal de Saúde se orgulha de lançar um programa que distribuirá Profilaxia Pré-Exposição (PreP) para apenas oito pessoas por mês. Soma-se a isso o fato de que apenas dois hospitais ofertam o medicamento exclusivo para a população considerada de risco.5 Além disso, a prefeitura de Goiânia em 2018, a mando do governo estadual, fechou um dos centros de referência de tratamento ao HIV da cidade, sobrando apenas um, que não comporta o tamanho da demanda, visto que não atende somente às pessoas com HIV.6

Ao mesmo tempo, institui uma política de perseguição à população LGBT, fechando espaços da cidade, como o Bosque dos Buritis, para, citando o presidente da Agência Municipal de Meio Ambiente de Goiânia (Amma), “proteger nossas crianças de gays”. Esse era um espaço histórico de encontro da comunidade LGBT, inclusive com um forte trabalho de prevenção a Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), promovido por diversas ONGs. Para além do fechamento de espaços públicos, reforça-se um processo de militarização da sociedade ao instituir que só poderá adentrar nesse espaço quem estiver com a presença de um “guia”, que na prática é um vigilante daquele lugar.

Salientamos aqui a questão do aprofundamento da militarização do estado como um todo. Goiás é hoje o estado com uma das PMs mais mortíferas do país, sendo uma conclusão não baseada em dados oficiais, pois o Governo Caiado não divulga os números das abordagens policiais. Da mesma forma, a Guarda Civil Municipal (GCM) de Goiânia passa por um processo acelerado de militarização em que cada vez mais deixa de cumprir uma função de guarda patrimonial e passa a andar armada e fazer abordagens violentas. Vale lembrar que recentemente dois presídios estaduais foram transformados em prisões exclusivamente para LGBT, o que, entre vários outros problemas sobre a própria concepção de presídios, põe em relevo que é preciso ter presos para justificar o gasto com essas estruturas.

Durante o segundo turno da campanha eleitoral municipal de 2020, as principais lideranças LGBTs de Goiânia se reuniram em um evento para fazer a entrega de uma carta-compromisso em que uma das reivindicações era a criação de uma secretaria LGBT na prefeitura – o PCB não só esteve presente no evento, como também ajudou na escrita da referida carta. A equipe do prefeito recém-eleito, Maguito Vilela, à época internado –  ou seja, antes de o vice-prefeito Rogério Cruz assumir o governo municipal –, criou uma superintendência LGBT, tendo à sua frente um homem trans vindo da militância. Aquilo foi um sopro de esperança para a comunidade LGBT goianiense, contudo, esse respiro foi suprimido logo em seguida pelo fato de esta pasta ter sido usada durante os últimos três anos apenas como moeda de troca, com eleitoreiros pela base (política e social) do prefeito.

Todavia, no último dia 11 de abril, todos nós fomos surpreendidos com a troca do superintendente, substituído por um bolsonarista, pró-arma e pastor de uma igreja “cool” de Goiânia, seguindo a lógica Nikolas Ferreira de fazer política. Tudo isso gera um contexto de muita tensão junto aos movimentos sociais, uma vez que expressa uma tentativa do atual governo municipal de capitanear a parada LGBT de Goiânia para iniciar uma campanha de reeleição de Rogério Cruz. Graças à pressão feita pela militância LGBT da cidade e da mídia goianiense, no dia seguinte ele foi destituído do cargo.

Assim, verificamos o Estado, em Goiás, tanto na esfera estadual quanto municipais, cumprindo de forma exitosa uma das suas funções perante o capitalismo: de manutenção de uma ordem hetero-cis-normativa e de instrumentalização da “defesa” dessa ordem como pauta conservadora-autoritária-fascista pela perpetuação sistêmica do capitalismo. A lógica da família capitalista é a de um espaço de criação das próximas gerações de trabalhadoras e trabalhadores. Dessa forma, o capitalismo se arma e reproduz uma ideologia de combate do núcleo familiar homoafetivo da classe trabalhadora. Não por acaso vemos a importância que as igrejas, em especial aquelas fundadas sobre doutrinas neocalvinistas e/ou neopentecostais, vêm ganhando no cenário político com o avanço do fascismo.

Diante da mais recente crise mundial do capital, que se arrasta desde 2008, tudo que se levantar contra esse padrão será combatido. Não à toa houve um recente boom em células neonazistas e movimentos fascistas não só pelo Brasil, como também pelo mundo afora, de modo que esses movimentos se colocam como momento de fechamento do regime capitalista para a sua reafirmação e impedimento de avanço das organizações socialistas.

É importante demarcar aqui que, ao passo que para a classe trabalhadora, em especial de países de capital periférico, é colocada em posição de defesa do núcleo familiar, para os países de capital central, a lógica é outra. Se, com o avanço do trabalho assalariado e a criação de um ambiente de certa “liberdade” para as expressões individuais, foi possível o surgimento de uma identidade LGBT, essa passou a ser capturada e comercializada nos moldes do capital. Logo, a identidade passou a ser um instrumento do capital para que a classe não seja o cerne da questão, mas as individualidades.

Observamos, portanto, países como Estados Unidos e Austrália, além de regiões da Europa Central, sendo vendidas como “Paraísos LGBT”. No entanto, isso não passa de uma desorganização da luta coletiva, tendo em vista que o individual passa a ser o primeiro plano do pensar e agir. Assim, não é de causar surpresa a existência de grupos como “Gays com Bolsonaro”, conjunto de empresários gays que abertamente apoiavam o ex-presidente, visto que a classe vem antes da identidade.

Para nós, do PCB, é muito claro que não existe qualquer possibilidade de melhoria de vida para a maioria absoluta da população LGBT dentro do capitalismo. A classe trabalhadora não é homogênea e a opressão sofrida se dá de diversas formas e níveis, com formas particularmente intensas sobre a parcela LGBT. Por conseguinte, compreender as especificidades das lutas e avançar nas mediações necessárias é central para a organização das/os trabalhadoras/es em sua diversidade e multiplicidade e para a constituição do Poder Popular enquanto um instrumento de hegemonia e independência proletária.

Entendemos também que a luta não será vencida em isolamento. Mesmo com diferenças na concepção sobre o movimento LGBT, conclamamos para a construção de uma reunião ampliada, fora das instâncias da organização da 27ª Parada LGBT de Goiânia, com as lideranças LGBT de Goiânia e de Goiás para a construção do dia 17 de maio, Dia Internacional de Combate à LGBTfobia, para a construção de uma agenda de atividades de denúncia da situação da população LGBT de Goiás/Goiânia e de mobilização para combater essa realidade.

Assim, tendo sempre como horizonte a superação da exploração do homem pelo homem e a construção do socialismo, reforçamos que LGBT TEM CLASSE e reafirmamos nosso compromisso de combate ao fascismo e a todo e qualquer tipo de preconceito e/ou discriminação, em especial às LGBT.  Também conclamamos a todas que venham aderir à luta comunista revolucionária pela superação do capitalismo!

AS GAYS, AS BI, AS TRANS E AS SAPATÃO.

TODAS ORGANIZADAS PRA FAZER REVOLUÇÃO!


* Secretário Político da UJC-GO, membro da CNUJC, diretor da UNE pelo MUP/UJC e militante do PCB.

1 PESQUISA foca apagão de políticas públicas LGBTI+ em Goiás e outros estados. A Redação, 8 mar. 2023. Disponível em: https://aredacao.com.br/noticias/183546/pesquisa-foca-apagao-de-politicas-publicas-lgbti-em-goias-e-outros-estados. Acesso em: 26 abr. 2023.

2 MORTES e violências contra LGBTI+ no Brasil: Dossiê 2021. Florianópolis: Acontece, ANTRA, ABGLT, 2022. Disponível em: https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/dossie/mortes-lgbt-2021/. Acesso em: 26 abr. 2023.

3 BENEVIDES, Bruna G. (org.). Dossiê assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021. Brasília: Distrito Drag, ANTRA, 2022. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2022/01/dossieantra2022-web.pdf. Acesso em: 26 abr. 2023.

 4 DEFENSORIA Pública encontra problemas para quem busca transgenitalização em Goiás. Sagres, 3 abr. 2023. Disponível em: https://sagresonline.com.br/defensoria-publica-encontra-problemas-para-quem-busca-transgenitalizacao-em-goias/. Acesso em: 26 abr. 2023.

 5 SECRETARIA Municipal de Saúde participa de projeto de assistência à população vulnerável para prevenção ao HIV. Prefeitura de Goiânia, 9 mar. 2023. Disponível em: https://www.goiania.go.gov.br/secretaria-municipal-de-saude-participa-de-projeto-de-assistencia-a-populacao-vulneravel-para-prevencao-ao-hiv/. Acesso em: 26 abr. 2023.
6 PREFEITURA de Goiânia fecha unidade referência no tratamento da Aids. Sindsaúde/GO, 12 nov. 2018. Disponível em: https://www.sindsaude.com.br/prefeitura-de-goiania-fecha-unidade-referencia-no-tratamento-da-aids/. Acesso em: 26 abr. 2023

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